Outro dia estava ouvindo um episódio do podcast Café com Cuscuz com Elisama Santos e Alexandre Coimbra do Amaral, em que ela mencionou algo sobre a diferença entre caber e pertencer. Aquilo ficou martelando na minha cabeça por dias, porque me tocou de uma forma profunda. Sou expatriada, mãe, estamos atravessando uma pandemia e no momento estou dando um passo de reinvenção profissional. Tudo isso, de certa forma, traz questionamentos quanto a caber ou pertencer, seja em lugares, grupos, relacionamentos, posturas.
O que a Elisama diz é que para caber precisamos constantemente fazer ajustes, cortar um pouco aqui, esticar ali. Pensa em um sapato, se calçamos 36 e o sapato é 35, pode até ser que caiba, mas teremos que encolher os dedos e aguentar o aperto. Já se o sapato é 37, temos que colocar uma meia mais grossa ou um algodão na ponta, para esconder o que falta. Ou seja, de uma forma ou de outra, precisamos mascarar um pouco quem verdadeiramente somos. Já o pertencer é uma outra coisa. Quando nos sentimos verdadeiramente pertencentes, não temos que nos ajustar, nos sentimos à vontade com quem somos, o nosso sapato 36.
É possível pertencer a outro país?
Acho que todo expatriado pensa em algum (ou muitos) momento: mas eu pertenço a este lugar? Eu já morei em diferentes países em diferentes momentos de minha vida. A adaptação a uma nova cultura é cheia de dificuldades (e coisas boas também, ainda bem!). Em muitos aspectos temos que nos ajustar para caber melhor, como por exemplo o fato de termos que aprender uma nova língua e nos comunicar com todo o entorno praticamente exclusivamente nesta língua, que não é a materna. Quantas vezes falo algo estranho ou troco algumas palavras que mudam totalmente o sentido do que eu queria dizer?
Só o fato de ser estrangeira faz de mim sempre a estranha no ninho, as minhas referências de infância são outras e não conheço os programas de tv ou bandas que tocavam o coração na adolescência dos meus coetâneos, por exemplo. Mas com o tempo fui percebendo que isso tudo não é motivo para eu não pertencer ao meu novo país. Pertencer tem muito mais a ver com como nos sentimos à vontade para sermos quem somos.
Eu passei grande parte da vida querendo ser aceita, querendo fazer parte, mas por alguma razão eu achava que para isso eu deveria caber, me adaptar, o que muitas vezes envolvia me calar ou ceder. Hoje percebo que todas as minhas mudanças de país envolveram eu entrar em contato com quem verdadeiramente sou, aquela liberdade para ser quem se quer ser em um lugar onde ninguém te conhece, sabe? Porém a última, aqui para a Itália, foi a mais difícil em termos de conseguir me sentir pertencente. E o mais engraçado é que foi o local para onde já me mudei mais fluente na língua e até na cultura, visto que sou casada com um italiano. Ou talvez exatamente por isso, e pelo fato de ter vindo para cá recém-mãe, foi tudo diferente.
Sabe quando eu senti realmente que pertenço a este lugar, que Verona é minha casa? No início da quarentena. E isso me leva ao segundo ponto aqui.
O sentimento de pertencimento (ou não) advindo da pandemia
Que essa pandemia veio mudar nosso modo de vida e de olhar o mundo não é novidade para ninguém. Ou assim espero. A nível pessoal (e torço para que não apenas), o isolamento social, a necessidade de diminuir o ritmo e ficar em casa somente com o núcleo familiar 24/7 vem mexendo com cada um de nós.
Quando essa loucura toda começou eu estava de férias no Brasil com a minha pequena, meu marido tinha ficado na Itália por motivos de trabalho. Era um período em que eu já havia começado a planejar um recomeço profissional, mas muitas vezes me via aborrecida com o quanto as coisas na Itália são lentas e o quanto eu não conseguia me encaixar profissionalmente. Tinha marcado essa viagem para o Brasil exatamente porque já que a sensação era de que eu não conseguia fazer nada, que pelo menos eu aproveitasse a liberdade de ir e vir sem obrigações de férias e escola. E de repente tudo começou a fechar, voos foram cancelados e me bateu um receio danado de não conseguir voltar para casa. Sim, foi aí que eu senti verdadeiramente onde era a minha casa. Senti um pertencimento e uma certeza que não havia até então sentido.
Quando cheguei em casa, olhei com olhos tão diferentes para aquele lugar! E a primeira vez que pude passear pela cidade após o confinamento, a cidade parece que me abraçou. Consegui finalmente parar de tentar caber e dei um primeiro empurrão na impostora que vive em mim para assumir que eu tenho muito a oferecer profissionalmente por tudo que estudo, leio e vivo. E eu sei que posso fazer isso em qualquer lugar do mundo, mas fazer isso da minha casa, sem precisar buscar um lugar aqui para me encaixar, é libertador.
Além disso, foi um período em que, reclusa, parei para olhar para algumas relações e grupos que participava e me perguntar: o que estou fazendo aqui? Eu pertenço aqui ou estou constantemente me tolhendo para caber? E, apesar de ser triste e por vezes até duro, consegui me afastar de onde me forçava a caber e me aproximar de onde posso realmente pertencer por ser quem sou.
A maternidade
Hoje sei que muito da minha dificuldade em me sentir pertencente na Itália se misturou totalmente com a crise de identidade que passamos ao nos tornarmos mães. Sobre isso tenho um post no meu instagram e também tem um texto interessante da colunista Aline Arruda aqui na plataforma.
Quando nasce um filho, a mulher passa por um processo de mudanças grande, e não apenas físicas. São mudanças emocionais, psíquicas, uma verdadeira transformação de quem se é. Muitas coisas da vida pré-filho deixam de fazer sentido, pois uma nova camada é incorporada à identidade feminina. Para isso, muitas vezes algumas coisas precisam ser abandonadas. Ter um filho é se adaptar a uma nova realidade, a uma nova versão de si mesma. Tudo muda. Inclusive um lugar onde antes se pertencia pode passar a ser incômodo e, pela dificuldade em aceitar que isso mudou, passamos a fazer tudo para caber. E sofremos por não conseguir, por ultrapassar nossos limites.
Olhar para essas mudanças todas e aceitá-las nem sempre é fácil, pois existe uma grande cobrança cultural para que a mulher volte o mais rápido possível ao que era antes. Impossível. Não é só sobre não caber nas mesmas roupas, mas é também sobre olhar o mundo com outros olhos e não querer mais somente caber em certos lugares (não apenas físicos). E isso tem uma relação profunda com conseguir se olhar e, assim, enxergar e respeitar os próprios limites em todas as relações que se tem na vida. É se conhecer e se aceitar, quando muitas vezes crescemos escondendo partes nossas (até de nós mesmos) em prol do outro. E por aí, já parou para pensar onde você não quer mais apenas caber, e onde quer pertencer?
3 Comentários
Texto liiindo! Super verdadeiro! Acompanho meu filho nessa trajetória fora do Brasil! Mestrado em Londres e Doutorado na Espanha. Ele me fala sempre do pertencimento e das raízes que aos poucos vem criando no país em que escolheu morar. Percebi que a quarentena trouxe novos sentimentos e certezas sobre sua escolha! Muito bom ler sobre sua experiência!
Ah, obrigada! Fico feliz que tenha feito sentido e que outras pessoas se identifiquem com a minha reflexao! Bom sorte para seu filho nesta nossa incansável busca por pertencimento!
Nossa, Amanda, esse texto é uma revelação!! Realmente, será que estou me adaptando ? Ou achei meu lugar???