Minha relação com o trabalho sempre foi um pouco tumultuada, para não dizer caótica. Formei-me em 1994 em Publicidade e Propaganda, no Rio Grande do Sul. Frequentava a faculdade à noite, levava uma hora e quinze minutos de ônibus para ir e o mesmo tempo para voltar. Além disso, durante o dia ajudava nos afazeres domésticos e cuidados com a minha irmã caçula. No começo, não me inquietava muito em trabalhar. Minha mãe sempre dizia que eu era mais útil em casa.
Primeiro bloqueio: o estágio
Com o passar dos semestres, vendo os colegas procurando estágio, comecei a me interessar em fazer um também. Na cidade onde morava havia algumas agências de propaganda. Conversei com conhecidos que trabalhavam ou tinham amigos que mantinham alguma ligação com agências, mas durante os cinco anos de curso nunca consegui um estágio. Para não dizer nunca, uma agência da cidade vizinha me deu uma oportunidade, mas ao cabo de uma semana eu desisti. Mais uma vez transporte coletivo para ir e voltar, salário ínfimo e gasto com comida e deslocamento que praticamente engoliam todo o meu ganho.
A continuação do calvário
Uma vez formada, montei uma agência com uma amiga e uma conhecida dela. Nenhuma das três gostava da função “ir à luta procurar cliente” e a sociedade durou dois anos. A partir daí, o calvário da procura por emprego começou. Acabei me mudando para Porto Alegre, onde a procura não foi mais fácil. Mais ofertas sim, mas mais candidatos também.
Entre 1994 e 2000 passei por algumas experiências profissionais: essa agência já citada, uma semana como assistente comercial, um trabalho como secretária que durou oito meses (que larguei por um cargo de redatora na agência da Universidade onde me formei, mas que acabou não dando certo), até encontrar um emprego de assistente de marketing. Fiquei nas nuvens! Era na minha área, em uma grande empresa, mas claro que não podia ser de todo bom. Meu carma com o trabalho ainda não havia terminado.
Apesar de morar na capital, para onde as pessoas do subúrbio se deslocam para trabalhar, a empresa ficava numa das cidades da Grande Porto Alegre. De novo, transporte público. Dois ônibus para ir e o mesmo para voltar. Entre cada ônibus, meia hora de caminhada. E o salário? Uma MISÉRIA. Mesmo assim, fiquei três anos na empresa, de onde saí para vir para a França com meu ex-marido, brasileiro, que tinha uma bolsa de estudos de um ano em Fontainebleau, não muito longe de Paris.
Trabalhar em outro país
A história toda é muito longa, mas resumindo: ele não obteve a bolsa integral (familiar), apenas a individual. Sendo assim, se eu não trabalhasse a situação ia se complicar. Pela primeira vez achei rapidamente um emprego, em duas semanas! Babá e faxineira na casa de uma bióloga, casada com um fotógrafo. Eu sentia um misto de orgulho – por ter conseguido trabalho em tempo recorde, mal falando a língua e sem conhecer ninguém – e frustração, por ter que encarar o duro labor doméstico. Minha nova patroa indicou-me para uma amiga e assim mantive dois trabalhos durante o período em que morei lá.
Ao fim de cinco meses, sem obter o visto de residente, voltei ao Brasil. Enfrentei um ano de desemprego. Minha experiência fora não contou para nada. Fui “colocada” num cargo público que pagava bem, mas no qual eu não tinha nenhuma utilidade. Me sentia completamente incompetente.
Trabalhar em outro país – de novo
Alguns meses se passaram, separei-me e mais uma vez o destino quis que eu deixasse a pátria amada. Conheci meu atual marido (francês) e vim de mala e cuia (e sem trabalho!) para a França novamente. De novo, lá fui eu fazer currículo, me inscrever em agência de trabalho e procurar emprego. Com uma dificuldade a mais: desta vez vinha para ficar e não queria me contentar com um trabalho doméstico ou de babá. Queria prazer, realização, crescimento!
Mas a que vagas me candidatar? Comunicação? Impossível sem domínio da língua. Secretária? Idem. Como redigir uma carta, atender ao telefone? Até tive uma micro experiência como vendedora, por um fim de semana de grande promoção comercial na cidade vizinha de onde morava. Um fiasco! Não podia sentar um minuto, tinha que sorrir todo o tempo como a Mona Lisa… e até hoje estou tentando entender o que procurava uma cliente que repetiu três vezes o nome do artigo que ela queria comprar!
Cheguei na França em 2005. De lá para cá trabalhei um ano como doméstica em uma casa com duas crianças, onde também ajudava com os deveres. Tinha contrato com carteira assinada, permanente e de tempo indeterminado. Encarei dez dias como vendedora numa loja da Disney. Odiei! E quando adquiri mais confiança em mim mesma, depois de obter o diploma de graduação em Literatura Portuguesa na Sorbonne (item essencial para incluir no meu currículo), lancei-me como tradutora autônoma. Consegui realizar alguns trabalhos, mas a demanda era muito fraca.
Alguns meses antes de engravidar, consegui entrar em uma grande empresa para traduzir embalagens de produtos de uma grande rede de supermercados. O contrato tinha duração determinada (CDD) mas podia ser renovado várias vezes e até mesmo transformar-se em permanente. Mas de novo não era pra ser. Grávida de trigêmeas, tão logo os três meses passaram e meu contrato não foi renovado. E após o nascimento das bebês, nem titubeei: dediquei-me a elas em tempo integral, até completarem três anos.
De volta ao Brasil
Por razões que a própria razão desconhece, encasquetei de voltar para o Brasil. Meu marido, que aparentemente não tem carma profissional, foi empregado rapidamente antes mesmo de sair da França. O mesmo não aconteceu comigo. Imaginava que após alguns anos morando fora conseguiria facilmente um trabalho em alguma das inúmeras indústrias moveleiras e vinícolas exportadoras de Bento Gonçalves. Ficamos dois anos morando lá e NUNCA fui chamada nem para uma entrevista. Trabalhei um pouco como professora de francês em uma escola de idiomas. Assim, ao menos salvei minha honra!
De volta para a França (ô mulherzinha indecisa essa!)
Na volta para a França em 2013, o que me esperava? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas. E agora? Tento de novo trabalhar como tradutora? Faço um curso? Desisto de trabalhar?
Fiz uma espécie de reorientação profissional e fui encaminhada para um curso de secretariado. Após seu término, devo ter ficado um ano tentando trabalhar na área. Consegui apenas um contrato como substituta, mal pago e ainda por cima não gostei nada da experiência. Sou muito “aérea”, distraída, nada prática, nem um pouco organizada, a antítese do perfil da secretária.
Leia também: Carreira profissional x ser mãe em tempo integral
Moro numa região onde os nomes de muitas cidades têm origem em uma língua celta, o bretão, quase impronunciável. A cada ligação eu devia identificar a cidade do meu interlocutor para anotar numa planilha Excel (minha arqui-inimiga). E entender o nome da dita cidade? Fazia a pessoa repetir três vezes e ainda assim nem sempre entendia. Além disso, eram várias linhas telefônicas e eu só sabia atender duas ao mesmo tempo. Se a terceira tocasse era um Deus nos acuda. Quando queria recuperar a primeira que estava na espera, voltava pra segunda, deixava cair a terceira…
Depois de muito penar, uma amiga me aconselhou a trabalhar como “assistante maternelle“, que consiste em cuidar de crianças (geralmente de zero a três anos) no próprio domicílio. Cada família é um empregador, somos assalariados e temos um contrato com cada família.
E hoje?
Agora, pela primeira vez na minha vida – tenho 48 anos e me formei aos 22 – , tenho um salário razoável, condizente com a minha função. Ademais, sou respeitada por todos os meus empregadores e tenho direito a cinco semanas de férias por ano. Não posso dizer que estou realizada. Adoro as crianças, é muito gratificante acompanhar a evolução delas, é prazeroso cuidar, brincar… Mas sinto falta de um trabalho mais intelectual, do contato com adultos. Minha colaboração com o “Mães Mundo Afora” preenche, em parte, essa lacuna e sou muito grata. Além de poder escrever, que é algo que adoro, tenho MUITAS colegas de trabalho. Estão longe, nunca as vi pessoalmente, mas podemos contar umas com as outras, nos falamos praticamente todos os dias, dividimos nossas dúvidas e certezas…
E acho que agora, finalmente – antes tarde do que nunca – pude festejar o 1° de maio, com orgulho!
10 Comentários
Obrigada por compartilhar essa experiência, Zandra. Me sinto muito como vc! Adorei conhecer a sua trajetória profissional
Me reencontrei lendo seu texto Zandra, muito obrigada pela partilha … As vezes me sinto frustrada por não ter a mesma posição profissional q tinha no Brasil mas a ideia é essa mesmo temos que nos reinventar.
Querida Zandra, amei o seu texto! Me identifiquei bastante! Muito obrigada!
Obrigada por abrir o seu coração e compartilhar conosco., querida Zandra. Eu também tive que me reinventar aqui nos EUA sendo mãe de três crianças pequenas.😘
Zandra que texto lindo!!! Adorei o final e também adoro minhas amigas de trabalho, enchem o meu dia de alegria! Obrigada por compartilhar bjs de bem longe
Que texto maravilhoso! Obrigada por dividir sua experiência. Me identifiquei com vc em vários momentos!
Que relato! Que experiências profissionais! Fico feliz que tenha se encontrado depois de tantas tentativas! Recomeçar é sempre um desafio! E você recomeçou várias vezes!
[…] Leia também: Dia do Trabalho: dia de festa ou de frustração ? […]
[…] escrevi sobre meu carma profissional, neste texto. Tratei de como tive que remar por águas turbulentas antes de ancorar meu barco em um porto […]
[…] escrevi sobre meu carma profissional, neste texto. Tratei de como tive que remar por águas turbulentas antes de ancorar meu barco em um porto […]