Qual o impacto do uso de câmeras pelos pais na base emocional das crianças ?
O limite sobre o uso de eletrônicos por parte das crianças é uma conversa que vem acontecendo já há um tempo entre pais, profissionais da área educacional e de saúde infantil. Mas não muito frequentemente vejo discussões a respeito do ponto de vista contrário: o uso exacerbado de mediadores tecnológicos, como câmeras dos telefones, por parte dos pais durante a interação com seus filhos. E menos ainda a respeito do impacto destes na construção da identidade emocional infantil.
O ser humano se percebe enquanto indivíduo a partir do olhar do outro, em uma busca constante de significados e significância da sua construção de vida. O que faço e como me apresento ao mundo só ganha sentido quando o outro valida minha presença.
O que não comumente analisamos é o impacto dos mediadores tecnológicos sob o viés da influência que esse exerce quando presente entre o olhar do adulto e da criança, principalmente ao longo da construção da identidade e base emocional desta.
Mais que uma memória afetiva
Recentemente vivenciei duas situações que retratam essa realidade.
Meu primeiro exemplo é um vídeo em que uma mãe brincava com seus dois filhos e compartilhava um momento de susto que as crianças estavam passando em função de um barulho agudo que acontecia próximo à casa deles. As crianças estranharam o barulho tão intenso e buscaram na mãe conforto e segurança. A mãe, tentando trazer leveza e alegria para a situação, começava a rir sempre que o barulho acontecia. O tom que ela estava propondo era de que seria possível tratar momentos de tensão com uma boa risada.
Porém, um ponto passou desapercebido: o uso do celular como mediador tecnológico para filmar a situação retirou a presença da mãe daquele espaço de pura carga emocional. Ali, naquele momento de insegurança, as crianças buscavam na mãe acolhimento para o seu sentimento de medo. Mas, a partir do momento que a mãe trouxe o celular para a interação com os filhos, o olhar dela já não estava voltado para as demandas emocionais deles, e sim para a ação de filmar e registrar a cena.
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O segundo episódio vivenciei pessoalmente ao levar meu filho para brincar em um parquinho. Pouco depois que chegamos, uma mãe e sua filha se aproximaram. Do momento em que a menina começou a explorar os brinquedos até a hora de ir embora a mãe usou o celular para registrar cada segundo. Corria atrás da criança, chamava sua atenção, pedia que ela olhasse para a câmera, sorrisse, pulasse. A todo momento a atenção daquela garotinha era interrompida pelo desejo da mãe de registrar suas aventuras no parquinho.
Ambas as circunstâncias partem de um lugar de amor, cuidado e atenção. Pelo ponto de vista dos pais, o registro desses momentos vai para além de uma memória afetiva; se veem presentes e manifestando seu amor e carinho pelo filho. E de fato estão. Mas não podemos deixar de pensar como esse uso exacerbado de câmeras pelos pais como mediadores está impactando a liberdade de expressão das nossas crianças e a forma como lidam com suas emoções.
Percepção de mundo e a base emocional infantil
Sabendo-se que a criança ao longo do seu desenvolvimento está formando sua percepção de lugar no mundo e aprendendo a lidar com suas emoções, a presença do telefone ou câmera como um mediador do olhar dos pais começa a apresentar influência direta no seu comportamento e impacta a base emocional infantil. Quando apresentada de forma desequilibrada e constante, retira a atenção da criança do momento vivido e transfere para a necessidade de performar de acordo com a expectativa sobre ela colocada.
Uma criança que se sente exposta, principalmente em seu momento de vulnerabilidade, pode entender não existir um espaço livre e seguro para que ela seja autêntica ou para falar de suas emoções. Isso não apenas molda sua auto-percepção sobre a expressão dos seus sentimentos e da sua própria auto-confiança, mas também fere a relação de confiança sendo construída com os pais, por não se sentirem acolhidas na sua demanda.
A médio e longo prazo, os efeitos de tal situação podem influenciar a forma como a criança aprende a lidar com suas emoções, e alguns sintomas podem surgir, como:
- Necessidade constante em agradar o desejo do outro, colocando os seus próprios interesses em segundo plano;
- Dificuldade para lidar com frustrações, já que suas ações são regularmente colocadas em destaque;
- Ou até mesmo dificuldade em trabalhar sua liberdade de expressão.
Um olhar para dentro de si
Muitas das nossas referências sobre como lidamos e comunicamos nossas experiências e percepções vem das crenças a que fomos apresentados dentro de casa. Não somos comumente ensinados a falar sobre nossos sentimentos de pequenos, muito por não sabermos lidar com esses. Sentimos que se do outro lado não tem alguém que irá de fato nos ouvir, não vale a pena compartilhar, pois o medo é de que sejamos julgados. E a verdade é que se temos medo de lidar com as nossas próprias emoções, que dirá com os sentimentos alheios.
O Dr. Marc Brackett, psicólogo e fundador do Yale Center for Emotional Intelligence, professor e PhD em estudos sobre Emoções e Sentimentos no Child Study Center na Yale University, em uma entrevista com Brené Brown, diz que:
Ao expressarmos e regularmos nossas emoções precisamos de permissão para tal, e que alguém esteja disponível para nos ouvir. A forma como regulamos nossos sentimentos vai de acordo com nossas características pessoais: se somos extrovertidos ou introvertidos. As estratégias que usamos para lidar com nossos sentimentos também acompanha essas características. Regular um sentimento não significa não sentir. Você pode ter um sentimento e não deixar que ele tenha poder sobre você.
Inteligência emocional é uma das principais habilidades a se ter no mundo de hoje. “Sentimentos não processados não dissipam, não são benignos, eles sofrem metástases”, diz Dr. Marc. O primeiro passo, portanto, é nos darmos permissão para viver nossas próprias emoções.
Buscando nossa defesa diante do campo sensível e desconhecido dos sentimentos, articulamos saídas de emergência rápidas para evitar encará-los. Mas, se não entendermos e aprendermos a lidar com nossas emoções, como ensinaremos nossos filhos a senti-las?
Ao nos colocarmos vulneráveis diante de nossos sentimentos, estamos ensinando nossas crianças que está tudo bem partir desse lugar de vulnerabilidade. Assim demonstramos humildade e estabelecemos um canal aberto para comunicação. Nos tornamos presentes e acessíveis a partir da relação de confiança mútua sendo construída.
Mediadores tecnológicos: uma gota de equilíbrio e uma dose de moderação
O sentir é uma constante no que tange o ser humano, mas expressar a emoção não é tão intrínseco assim. Em sua construção de significados e auto-percepção por meio das vivências diárias, a criança busca no olhar dos pais o reconhecimento, a confirmação, a segurança, a direção. Seja para lidar com dor, celebração, vulnerabilidade, angústia, conquista ou medo, nossos filhos nos demandam olhar, escuta e presença.
Colecionar memórias faz parte da arte de contar histórias. E as fotos tiradas são lindas páginas do livro da vida de nossos filhos que estão sendo contadas. Mas o uso de bom-senso e moderação faz-se necessário.
Como tudo na vida, equilíbrio é a principal medida para aplicarmos ao que vivemos. Por isso considero ser tão importante aumentar nossa percepção para, o que penso ser hoje, um uso desregulado de câmeras pelos pais como mediadores tecnológicos na interação com nossas crianças. A narrativa emocional não necessariamente acontece por palavras, mas nunca escapa ao olhar.
2 Comentários
Eu amei esse texto num tanto…parabéns! Eu tenho mta dificuldade de usar o celular para filmar meus filhos exatamente por isso. Tão necessária essa discussão.
Obrigada por seu retorno Priscila. Assim como você eu e meu marido temos escolhas particulares em relação ao uso de eletrônicos perto de nosso filho e escolhemos preservar a ‘exposição’ da sua imagem em redes sociais. Acredito que a forma como a tecnologia está entrando em cena nas nossas relações e interações com as pessoas, assim como tudo na vida, precisa de equilíbrio também. E quando pensamos na importância desse olhar dos pais para os filhos, e o impacto na forma como eles são vistos, como seus sentimentos são recebidos e validados, aí a atenção precisa ser redobrada.