A repatriação me tirou o chão, mas me deu asas
Após a publicação do meu texto sobre como falar da morte do pai com crianças, recebi muitas mensagens de pessoas querendo saber como eu estava hoje, depois que perdi meu marido para um câncer repentino enquanto vivíamos a melhor fase de nossas vidas nos EUA. Quando tudo aconteceu, eu perdi o chão e precisei me encontrar de verdade. Precisei encarar o espelho e recuperar minhas forças para enfrentar tudo o que estava por vir.
Eu fui criada, como uma grande parte de mulheres, dentro do sistema do patriarcado, cheio de crenças limitantes em relação à força e ao lugar de poder da mulher no mundo. Acreditava que, casada e com filhos, minha vida do comercial de margarina estava completa e feliz.
Quando veio o convite para o meu marido ser transferido para os EUA, eu relutei. Não queria ir, chorei, esperneei e sofri, porque percebi que o pouco da independência que havia conseguido com meu trabalho iria por água abaixo. Lá eu não seria ninguém e tudo o que eu havia conquistado ficaria guardado dentro de mim.
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Depois de alguns meses morando fora, a certeza e sensação de não ser ninguém e de viver na cola do meu marido veio com toda a força. O meu sentimento foi de solidão, incapacidade, revolta e raiva de mim por ter deixado a coisa chegar naquele ponto. Eu tinha me entregado na vida para o outro, tinha me anulado em todos os sentidos, tinha me doado ao casamento, aos filhos e ao servir.
Esses foram temas de diversas conversas com o meu travesseiro molhado de tanto chorar. E o pior, eu me via sem saída. Eu tinha embarcado no sonho dele, não tinha dinheiro, minha família estava feliz, eu não tinha emprego, não falava a língua e nem podia reclamar porque ia ser dada como louca de reclamar da vida de rainha que eu estava levando. Eu era a princesa trancada na torre.
Num rompante, resolvi observar o inimigo e colocar a minha profissão em ação e ao meu favor. Voltei a fazer terapia, resolvi começar a atender online e montei rodas de conversas com mulheres. E por trás de tudo aquilo tinha um único objetivo: ser independente financeiramente. Mal sabia eu que o que vinha junto era a mudança de chave da minha vida.
Como se deu a repatriação
Alguns dias antes do meu marido falecer, lembro que em uma conversa de brincadeira, cogitamos a ideia de acontecer o pior. E eu, “menina ainda”, desesperada, pedi que ele me dissesse o que fazer. Queria que ele decidisse por mim se ficava no país, se ia embora, do que ia viver, e como seria o futuro das crianças, caso ele viesse a falecer. Ele sabiamente me disse: “eu sei o eu faria se estivesse no seu lugar, mas eu não posso te dizer o que você vai querer fazer.”
Quando tudo aconteceu, eu lembro de olhar no espelho e dizer para mim:
Agora vai começar a minha jornada.
Eu tinha só duas escolhas: ou sentava e chorava esperando alguém me salvar e continuava tudo igual, ou ganhava a tão sonhada independência e ia à luta (na época não sabia nem de que luta estava falando).
O meu primeiro desafio foi assumir o meu lugar de chefe de família e com ele todas as decisões, sem deixar ninguém assumir esse papel. A minha primeira grande decisão foi resolver voltar, ao contrário do que todos diziam. Achavam uma loucura eu largar tudo aquilo para voltar para o Brasil. Mas o que todos não colocavam em questão é que eu estaria sozinha, era o meu caminho e não o que eles achavam que seria melhor. Era a hora de fazer a minha própria jornada.
Eu precisei me blindar e ficar no casulo muito tempo para poder calar as vozes externas e reunir forças para acreditar nas minhas vozes, mesmo baixinhas.
Chorei muito, briguei internamente, tive que desatar nós, recuei várias vezes, pedi ajuda, busquei ainda muitas vezes os conselhos dele dentro de mim. Mas uma coisa sempre voltava a me motivar: não tinha mais volta. Era seguir, e com medo mesmo.
Meu aprendizado
Eu decidi não voltar para São Paulo, onde tinha minha casa, amigos e uma boa parte da minha história. Resolvi morar em Minas, onde estava morando a minha mãe e grande parte da minha família. Tive que ser estrategista e colocar tudo na balança racionalmente, mesmo tendo que começar “tudo” do zero.
Em julho agora fez um ano que eu comecei a escrever esse novo capítulo da minha história. Foi um ano de muitos recomeços, reconstruções e destruição de padrões e costumes, mas de muito aprendizado. Eu aprendi:
- Temos direito de não ser invisível;
- Não posso ser coadjuvante da minha história, e sim protagonista;
- Sempre criei meus filhos para o mundo e eu tenho o direito de ser livre também;
- Escolha é algo que dá trabalho, nem sempre temos a resposta, mas é um alívio quando se toma a decisão, mesmo não se tendo total certeza dela;
- Não vou deixar mais ninguém me dizer o que eu vou fazer. Ouço todos e decido por mim;
- Valorizo e aplaudo cada micro-vitória. Assim me sinto capaz e poderosa;
- Foi e ainda é uma briga interna diária, mas estou anos-luz de onde parti;
- Voltaria e faria tudo de novo.
A busca pelo autoconhecimento, tanto na minha profissão como na minha vida pessoal, foi a ferramenta que me proporcionou realizar esse novo projeto. A repatriação foi a volta para a casa “interna” que me proporcionará voar para o mundo inteiro. Eu não preciso mais ir tão longe para me achar, hoje já sei onde me encontrar.
PS: As crianças estão bem também, já adaptadas, com novos amigos e unidos seguimos a nossa caminhada.
4 Comentários
Olá Deborah!
Acabei de ler seu texto, parabéns por ter tomado a direção da sua própria vida. Eu vivi um dia o sonho do meu ex-marido e me tornei um pessoa infeliz. Hoje novamente casada vivo os meus sonhos, confesso que meu casamento é bem melhor que o anterior e eu sou mais feliz.
Mais uma vez parabéns pela coragem.
Um grande abraço vitural 🙅🏾♀️
😘
obrigada Luciana. Aprendi a duras penas a tomar as rédeas da minha vida, mas não solto mais. Nós mulheres temos que quebrar muitas amarras ainda dentro da gente.bjs
Amei seu depoimento. Vivo nos EUA há 14 anos. Apesar de sempre ter trabalhado aqui, ter feito meu segundo bacharelado e mestrado, minha filha ter nascido aqui…. ainda dentro Mim tem sempre aquela vozinha dizendo que está chegando a hora de voltar pra casa… E acho que agora, mais perto do que nunca…
Fico feliz que o texto tenha te tocado Sandra. Quem sabe agora você dá voz a essa vontade e volta apar aa casa. não é fácil. São muitos pontos a serem colocados na balança, mas as vezes o conforto do lar é melhor do que tudo. Boa sorte na sua decisão. E se precisar conversar, estou a disposição. bjs