A cultura francesa de não falar outro idioma
Os franceses, em geral, não têm problema em admitir a dificuldade que representa para eles falar outra língua. Acho até que se orgulham disso. Porque no fundo, eles acreditam que a beleza e a singularidade da língua francesa justificariam essa inépcia em aprender outros idiomas. O atual Presidente da República, Emmanuel Macron, é fluente em inglês, mas seus antecessores, François Hollande e Nicolas Sarkozy, não iam muito além da base escolar.
No entanto, a proximidade com países anglófonos deveria ser um fator facilitador. Afinal, não é tão difícil nem tão oneroso deslocar-se em trem, navio ou de avião até à Inglaterra ou à Irlanda.
Segundo estudos recentes:
- 2/3 da população francesa não fala nenhuma língua estrangeira fluentemente.
- Somente 1/3 dos franceses consideram importante aprender outro idioma.
- Entre os franceses que estudam outra língua, apenas 14% conseguem atingir um bom nível.
Essa dificuldade linguística também se explicaria pelo fraco número de horas-aula dedicadas ao ensino de língua estrangeira. Desde 2016, os alunos têm aula de inglês a partir do primeiro ano primário, mas não mais que uma hora e meia por semana. Somente a partir do sexto ano é que a carga horária aumenta para quatro horas semanais. E a partir do sétimo ano os alunos escolhem uma segunda língua estrangeira, como espanhol ou alemão.
E pelo que conheço, o nível dos professores deixa muito a desejar, principalmente no que diz respeito à pronúncia. Quando as minhas filhas estavam no quarto ano, em escola particular, a professora de inglês era também a diretora da única escola de idiomas da cidade onde moramos. Em uma reunião de pais e professores ela expressou-se em inglês e eu fiquei es-tu-pe-fac-ta! Como dizem aqui, ela tinha “un accent à couper au couteau” (um sotaque de cortar com a faca). Muuuuuito ruim. E tenho conhecimento de que ela viaja regularmente à Inglaterra em férias com a família ou acompanhando viagens escolares. Mas não sei, não funciona. O francês parece que quer afrancesar todos os idiomas. Algo como, “visto que o inglês é muito mais falado no mundo que o francês, precisamos manter a supremacia, nem que seja no sotaque”.
A cultura francesa das viagens escolares
Nesse mesmo ano em que frequentaram essa escola minhas filhas viajaram para Newquay, na Inglaterra, durante cinco dias. A viagem de navio foi realizada a partir de Roscoff (Bretanha FR) até Plymouth. Durante a estadia, os alunos praticaram esportes locais, comeram comida típica e assistiram a algumas aulas de inglês. Mas não são somente as escolas particulares que organizam viagens pedagógicas, as públicas também o fazem, dentro e fora do país. Os mais visitados são a Alemanha, a Espanha e o Reino Unido.
O inglês na cultura francesa
O mais hilário é que aqui se usa muito vocabulário inglês. Mas com pronúncia local. Então quando cheguei nesta terra do biquinho, escandalizei-me ouvindo :
“Ui-fi” (para Wi-Fi)
“Miamí” (o primeiro i é pronunciado como i mesmo e o segundo i é tônico)
“Nilôn” (nylon)
“Apí” (Happy)
O H aspirado eles nunca pronunciam, nem sob tortura! É um festival de “Apí”, “I ave” (I have), “hipí” (hippie) e por aí vai. E o pior de tudo é que a gente faz igual! Não tem como. Se não pronunciar como eles, ninguém entende, e ainda por cima, dão uma risadinha de canto como dizendo: “ah, pronunciando assim, como quer que eu entenda?”. Somos fadados a pronunciar mal, acabamos nos acostumando e no final nem nos lembramos mais da pronúncia correta.
Aqui não comemos brownie, mas bruní (sim, como a esposa do ex-presidente Sarkozy), não compramos em loja discount mas discunt, não dançamos ao som de música country mas cuntrí, não festejamos halloween mas aloíne. Da mesma maneira fazemos shopíngue, brushíngue, joggíngue e usamos legguíne.
Leia também: To be or not be: o inglês que eu não aprendi
Mas nem tudo está perdido. As gerações mais novas têm investido em cursos presenciais ou on-line e em intercâmbios. E muitos pais começaram a se questionar sobre a importância de expor as crianças a uma segunda ou mesmo terceira língua desde a tenra infância. Eu trabalho com crianças pequenas e sempre digo aos pais que se eles não se opõem, posso introduzir palavras, frases e músicas em português no quotidiano dos filhos. Todos acolhem super bem a ideia e alguns dizem mesmo que me procuraram pelo fato de eu ser bilíngue. Acho que perceberam as próprias limitações e querem facilitar a vida escolar e profissional dos filhos.
E se quiser conhecer um pouco mais sobre as diretrizes oficiais para ensino de línguas estrangeiras na França e sobre a cultura francesa, clique aqui.
1 Comentário
Que texto delicioso de se ler! Confesso que o meu H é leve na pronuncia quando falo em inglês! Meus professores sempre se queixam. É complicado demais aprender uma língua estrangeira mais velha! Obrigada pelo texto!