Vir da classe média carioca e acessar os serviços públicos na Inglaterra significa conhecer uma nova forma de se relacionar com a instituição escola e com os cuidados com a saúde. Desde que cheguei aqui, continuo aprendendo sobre o funcionamento dessas instituições. Posso dizer também que em tempos de pandemia, os desafios trazidos pela chegada do Coronavírus impactaram bastante os serviços públicos na terra da rainha.
Adaptações ao sistema de saúde britânico
Ainda no Rio de Janeiro, logo antes de nossa mudança, fui a uma pediatra do plano de saúde. A médica nos indicou uma lista de remédios para trazermos para a Inglaterra. Com certa agonia, coloquei na mala alguns antibióticos e pomadas, além de outras recomendações.
Hoje considero que não foi uma boa decisão. Digo isso porque penso que é fundamental conhecer a prática local da medicina, além de seguir as orientações dos profissionais que tem experiência com o sistema do país. Trazer remédios na nossa bagagem não se mostrou como sendo algo útil para a nossa adaptação aqui.
Assim, logo que chegamos, uma das primeiras providências foi a inscrição no GP (General Practitioner), que funciona de forma parecida a uma clínica da família.
Entendendo o GP
O GP será sempre o primeiro contato quando você precisar de cuidados com a saúde. Se necessário, ele irá te encaminhar a um especialista.
Você não escolhe livremente o seu clínico ou o especialista. Por aqui tudo é feito com base no seu endereço, então, esqueça aquele esquema de indicações e busca frenética por referências que é comum no Brasil.
Tudo parece simples e mais justo. A princípio, todos, sem exceção, têm acesso aos mesmos médicos, especialistas e tratamentos.
Sobre o NHS
O NHS (National Health Service – Serviço Nacional de Saúde) oferece atenção universal para todos os residentes. Crianças não pagam por nenhuma medicação prescrita, todos os anticoncepcionais são gratuitos e se você tem algum problema crônico de saúde, também não irá pagar pelos remédios.
Para se ter uma ideia, o preço médio para qualquer medicação na Inglaterra é nove Libras. Já na Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, as medicação são gratuitas.
Para quem vem do Brasil e estava acostumado a gastar com consultas, exames e contas na farmácia, a diferença é brutal. Saúde aqui não é produto à venda e está disponível para todos.
Minha experiência pessoal com a saúde pública
Todos os meses vou a farmácia buscar meu remédio de uso contínuo para tireóide. Confesso que ainda me espanto por não ter que pagar por ele. (Claro que há impostos e subsídios que permitem que eu não desembolse nenhum valor ao retirar o remédio).
Mas nem todos estão satisfeitos. Há muitos brasileiros que estranham a pouca quantidade de exames solicitados e um estilo menos intervencionista de tratamento. Há aqueles que nunca se adaptam ao sistema britânico e reclamam muito. Um dos pontos bastante diferentes em relação ao Brasil são as consultas de acompanhamento pediátrico.
No Reino Unido, as crianças menores de cinco anos fazem consultas de rotina com um health visitor, já as mais velhas, estão dispensadas. Minhas filhas tomaram vacinas, tiveram peso e altura checados na escola. Lá também passaram por testes de visão e audição. Isso é possível pois os dois serviços, escola e saúde, são interligados e um dá suporte ao outro.
Para mais informações sobre o NHS leia aqui (em inglês).
A escola pública inglesa
A realidade da escola pública também é diferente das escolas particulares no Brasil. Costumo dizer que as minhas filhas precisaram cruzar um oceano para estudar lado a lado com crianças de diferentes cores, etnias, religiões e classe social. Acredito que esse é um dado revelador ao pensarmos que, no Brasil, a maioria da população não é branca, e ainda assim, alunos da rede particular não vivenciam a diversidade nos espaços escolares.
Para mim, a escola pública inglesa é concebida como um espaço comunitário onde cabe toda a gama da diversidade. Isso por si só, já é um aprendizado e tanto. Aquele é um espaço das crianças e cabe a elas usufruir e cuidar dali, tendo diversas funções e “trabalhos” dentro da escola. A lógica não é a do consumismo, mas de cidadania. As famílias não são consumidores que pagam por um serviço, mas cidadãos que usufruem de um direito universal. A escola providencia todo material necessário, e os pais apenas precisam comprar os uniformes – que também podem ser subsidiados, caso seja comprovado que a família não possui meios para comprá-los.
Ingresso na escola
O processo de matrícula é simples: basta apresentar o endereço e uma comprovação da idade das crianças. Mais nada.
O sistema educacional prevê acesso para todos. O critério é a proximidade entre escola e residência. A situação de visto de permanência, status social ou qualquer outra condição, não são nem questionadas.
O raciocício é simples: é criança? Então, deve estar na escola. Por isso, em dias de aula, não se vê criança na rua. Aliás, é bastante comum que alguém te pergunte por que sua criança não está na escola caso você esteja com seu filho na rua durante horário escolar.
Por aqui, educação, assim como saúde, também está disponível para todos e não se trata de um produto a ser colocado à venda.
Suporte escolar durante a quarentena
Durante a quarentena, tanto a diretora quanto os professores mantiveram contato com as famílias. Eles enviavam atividades buscando engajar as crianças , mas sem aulas on-line. Não havia obrigatoriedade de cumprir tarefas ou currículos.
Durante as ligações, as professoras buscavam saber sobre as crianças. Também perguntavam se estávamos precisando de material escolar, ou, ajuda com alimentação. Foi colocado à nossa disposição material informativo sobre saúde mental, tanto para pais, quanto para os filhos. Havia também amplo material abordando temas como a violência doméstica. Quando e, se necessário, eram oferecidos serviços de suporte bancados pelo governo.
Vale ressaltar que as escolas inglesas não fecharam inteiramente durante esses seis meses. Dois grupos continuaram a frequentar as atividades: os filhos de trabalhadores essenciais e as crianças em situação de vulnerabilidade. Nesse segundo grupo estavam as crianças que passam por problemas sociais ou de saúde, e que ficariam mais bem atendidas em ambiente escolar do que na própria casa.
Retorno às aulas
Setembro foi o mês de reabertura total das escolas.
No retorno, algumas medidas foram tomadas para garantir o distanciamento social. Por enquanto é visível a alegria das crianças por ocuparem esse espaço que pertence a elas.
Há ainda muita polêmica sobre o funcionamento das escolas para os próximos meses. O governo já anunciou que a abertura das escolas é prioridade máxima e que apenas em casos extremos cogitarão fechá-las novamente. Leia matéria da BBC sobre o assunto.
Incorporando novos valores
Desde nossa chegada na Inglaterra, incorporamos novos valores ao acessarmos plenamente o serviço público. Infelizmente, na nossa terra natal, experienciamos apenas o acesso parcial e restrito a alguns momentos da nossa vida.
Há um discurso de parte da população no Brasil sobre o quanto se consideram “privilegiados”. Afirmam que esse privilégio se dá pelo fato de poderem pagar por serviços privados. Ou em outras palavras, por poderem pagar uma escola e um plano de saúde – o que, em parte, certamente é verdade.
Mas, analisando por outro lado, hoje eu entendo que isso não é privilégio, mas sim, uma fatalidade. É o reflexo de uma sociedade desigual e injusta, onde se paga caro por algo que deveria ser um direito de todos.
Busco ter um olhar crítico em relação ao sistema britânico e é uma tarefa diária aprender a decifrar e conhecer melhor o sistema. Mas, sinceramente, sinto que privilégio mesmo é poder viver numa sociedade em que todos têm acesso à saúde e à educação, seja em tempos de pandemia, ou em tempos de “normalidade”.
Se quiser conhecer mais sobre o serviço público inglês, leia aqui e aqui.