Mulher expatriada: dona da minha casa e com muito orgulho
Talvez um dos maiores desafios pessoais que tive de lidar após minha mudança para Hong Kong foi a quebra do paradigma da mulher profissional bem-sucedida. Fui criada num meio onde só havia valor e respeito para aquelas mulheres que saíam de casa todas as manhãs com suas bolsas a tiracolo e voltavam para casa do fim do dia.
No Brasil, estava tentando repetir esse padrão e já começava a me frustrar, porque para mim era impossível trabalhar o dia todo, cuidar de perto da educação e alimentação das crianças, cuidar da casa (ou gerenciar os empregados para cuidarem) e ainda ter tempo para me cuidar, dar atenção ao marido, ter vida social e ainda ter um hobby.
É claro que estou falando de um contexto privilegiado no qual posso escolher trabalhar fora ou não. Sei que infelizmente essa não é a realidade da maioria, que precisa se desdobrar em várias tarefas. Percebo que no Brasil a cobrança em relação às mulheres é absurda e chega a ser cruel. Quando cheguei em Hong Kong, tive a oportunidade de conviver com mulheres de outras nacionalidades e perceber que existem outras formas de conduzir o “ser bem-sucedida”.
Reflexões que deram início à quebra de paradigma
Acho que a primeira coisa que me fez refletir sobre as minhas escolhas foi um papo com uma amiga que me disse que preferia dedicar o melhor dela para a família ao invés de uma empresa ou negócio. Aquilo mexeu muito comigo pois eu ficava o dia todo fora de casa no Brasil e quando chegava estava esgotada e, na maioria das vezes, irritada e impaciente com as crianças.
Outro ponto que me fez refletir muito foi a leitura do livro “Podres de mimados: as consequências do sentimentalismo tóxico”, do Theodore Dalrymple, publicado no Brasil pela É Realizações Editora.
O livro todo é muito bom. Foi um choque de realidade, recomendo fortemente a leitura. Sobre o assunto em questão, o que me fez refletir foi quando o autor diz que nós, pais, quando temos um sentimento de culpa em relação nossos filhos, tentamos compensar essa culpa com recompensas materiais e até permissividade.
Aquilo foi um tapa na cara. Eu me lembrei das concessões que fazia e dos presentes extravagantes para as crianças (que na época eram um pouco maiores que bebês) para aplacar a minha culpa por não estar em casa. Afinal, “coitadinhos, já ficam tão sozinhos!”
Comecei a pensar como seria com eles adolescentes, uma vez que meu marido já tem uma profissão em que ele precisa se ausentar. Como seria se eu também estivesse fora por escolha? Atualmente, quando vejo crianças que não tem um suporte e acompanhamento direto dos pais já sou capaz de perceber o quanto essa permissividade e pena podem ser nocivas. Quem educa são os pais, não a escola.
Para mim, estar inteira para acompanhar o desenvolvimento e o dia a dia da minha família não tem preço. Sinto-me extremamente bem-sucedida com o que eu gosto de definir como minha função primordial, educadora. Mas uma coisa é fato, não basta abrir mão da vida profissional e ficar em casa. Como minha avó já dizia, ninguém nasce sabendo e de boas intenções o inferno está cheio. Então, é preciso estudar e muito (e isso se aplica a tudo). Sobre alimentação, maternidade, relacionamento conjugal, organização doméstica…
Quando alguém solta a “pérola”: “Ah, então você é dona de casa, não trabalha” me dá até arrepios. A rotina é praticamente a de uma empresa, só que não temos férias, folgas e nem benefícios salariais.
Mas e o que você faz para você?
Desde que resolvi abrir mão de uma profissão e de estar inserida no mercado de trabalho, ouço essa pergunta com frequência e vejo olhares assombrados quando digo e repito que optei por ser dona de casa. Ou melhor, sou dona da minha casa. Também ouço alguns comentários do tipo: “isso não é para mim, não suportaria ficar em casa parada”. Entendo e respeito o ponto de vista das colegas. Mas há uma visão muito equivocada sobre o papel da mulher que se dedica à família.
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Eu tenho mais tempo para mim agora do que jamais tive. Enquanto minhas crianças estão na escola, consigo ler, estudar, malhar e gerenciar a casa com minha ajudante. Quando meu marido está de folga, posso ter momentos só com ele. Eu jamais teria condições de fazer tudo isso se tivesse uma rotina de trabalho de oito horas por dia!
Mas vou bater na tecla da organização mais uma vez. Se você não se preparar, definir um plano de ação com metas e prazos, os anos vão passar e você provavelmente sentirá o tão temido “não fiz nada da minha vida”
Mas como fica a sua independência financeira?
Também ouço com frequência essa pergunta. Aqui em casa nós trabalhamos em regime de parceria, cada um tem sua “função” e, principalmente, não sou inimiga e tampouco estou competindo com meu marido.
Ele é o provedor, portanto, a última palavra nas questões financeiras será a dele. Eu sou a cuidadora. Então, a última palavra nas questões domésticas será a minha. Ter esse ritmo familiar inclusive nos ajudou a conversar mais, flexibilizar, esperar e respeitar o momento certo das coisas.
Gosto de pensar da seguinte forma, se os dois forem prover o material, quem irá cuidar da estrutura? Temos o péssimo hábito de não valorizar nossas ações e se não valorizamos nosso trabalho em prol da família, quem o fará?
Atribuo essa quebra de paradigma à minha mudança de país. Honestamente, não sei se no Brasil conseguiria me abrir para esse estilo de vida e lidar com todas as cobranças sociais.
Quero deixar claro que esta escolha funciona para mim e minha família. Acho importante ressaltar que não existe um modelo certo universal, existe o modelo certo para cada família, de acordo com suas necessidades e possibilidades. Mas acho que é válido refletirmos sobre nossas ações e tentarmos entender o que estamos buscando quando tomamos nossas decisões.
E para você, qual foi a sua maior quebra de paradigma como mulher?
2 Comentários
Adorei o texto!! Me trouxe outra visão desse modelo social da divisão dos papéis . Eu fiz o movimento contrário ao seu por sofrer justamente o oposto.
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