Em conversa de WhatsApp, uma amiga me perguntou em que hospitais meu pai havia trabalhado como médico no Rio de Janeiro. Juntas, imaginamos se meu pai e a mãe dela não teriam se cruzado nos anos 70 na cidade. Às vezes, no meio do dia, assim de repente, penso em uma rua no Rio pela qual costumava passar diariamente e que não vejo há muito tempo. A memória de lugares onde trabalhei, idas e vindas para a escola das crianças, meu antigo bairro e o bairro onde nasci. São sensações, barulhos e uma arquitetura totalmente diferente da que agora vivenciamos. Penso que o imaginário infantil das minhas filhas que vivem aqui desde bem pequenas inclui casinhas com chaminés, prédios medievais e vitorianos. Sem falar em uma vegetação e clima bem diferentes de onde eu cresci.
Gosto muito da cidade e do bairro onde moro agora, no norte da Inglaterra. Há mais de três anos vivendo aqui, já temos uma coleção de memórias que fizemos nesta região. Neste período, mudamos de casa, elegemos nossos parques e lugares preferidos e passamos por três lockdowns – o que cria uma relação bastante intensa com a cidade. Criamos memórias significativas em datas comemorativas. Natal, Páscoa, férias de verão, dentes que caíram, primeiros dias em escolas e empregos, aniversários e outros momentos marcantes. Mas há ainda em nossos corações e mentes a memória que trazemos do Brasil.
Corpo em um lugar, cabeça em dois
A escritora nigeriana Chibundu Onuzo em seu belo artigo para o jornal The Guardian fala sobre a experiência de estar em um lugar com a cabeça em dois durante a pandemia. É exaustivo acompanhar os números e notícias em dois países distintos. Frequentemente, quando um está indo bem, o outro vai mal. Aqui no Reino Unido, no mesmo dia celebramos o sucesso da vacinação e a reabertura do país e lamentamos o maior número de mortos no Brasil e a falta de direcionamento político na pandemia.
Na impossibilidade de poder voar para o Brasil, trabalhamos com nossa memória afetiva. Deixo um pouco de lado os livros em inglês, para ler autores brasileiros em português. Felizmente, a literatura tem essa capacidade incrível de nos transportar para outros lugares. Li Torto Arado e voltei ao Brasil através das palavras brilhantes do autor do livro. Preparamos comidas brasileiras em casa, e nossas festas já tradicionalmente incluem empadinha de frango, pão de queijo e quibe. À tarde, quando chego do trabalho, bebo chá mate e me transporto um pouco. Vou caminhar com fones no ouvido escutando MPB e rock brasileiro. As músicas me lembram outras épocas da vida, conversas e espaços. Nos trabalhos da escola, minhas filhas aqui e ali se remetem ao Brasil. Falam sobre antepassados, desenham uma paisagem, ensinam colegas algumas palavras na língua materna. A mais nova ensinou a professora a dar bom dia. A mais velha assistiu na roda de notícias a críticas sobre como o atual governo brasileiro despreza a pandemia.
Zoom, WhatsApp e outras vantagens tecnológicas
E há as possibilidades da tecnologia. É verdade que não é possível abraçar ninguém pela tela e que todos a esta altura já sofremos de Zoom Fatigue. Mas podemos também ter conversas diárias com amigos e familiares do outro lado do globo. Esta é uma vantagem real. Antes de dormir, as meninas dão boa noite para a avó. Discutimos na reunião semanal do Zoom com a família do meu marido, comparando a situação em três países diferentes. Desta forma, conseguimos manter um contato frequente e compartilhar um pouco do que vivemos aqui e do que se passa em outros países, por onde nossa família e amigos estão espalhados. Apesar dos limites tecnológicos, este é um processo rico que nos dá a chance tanto de debater assuntos do nosso dia a dia como de conhecer mais e manter contato com outras realidades mundo afora.
Caixa de bombom
Usando uma loja virtual, uma tia me enviou uma caixa de bombons na Páscoa. Foi também muito especial receber este presente que cruzou fronteiras. A caixa de bombom me trouxe lembranças dessa tia, de momentos que compatilhei com ela na infância. Ela não sabe disso, mas quando aprendi a dirigir aqui, pensei muito nela. Ainda receosa de dirigir do lado ao contrário ao que estava habituada, surgiu na minha memória a imagem da minha tia dirigindo seu fusca nas ladeiras da serra fluminense. Da minha visão do banco do carona, achei ela corajosa e destemida. Se minha memória não falha, ela usava salto alto e batom vermelho. Este espírito me deu força para dirigir aqui também. Como disse o jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano, “a memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.”
Memória Ancestral
Tive a oportunidade de ler o livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, do pensador indígena Ailton Krenak há poucos dias. O seguinte trecho me fez pensar que talvez a gente não esteja assim tão distante das nossas memórias mais antigas. Ele diz:
“se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.”
Desta forma, quando há uma mudança de país, a memória pode ser esta força invisível que nos sustenta, onde quer que estejamos. Está mais ligada à terra, à natureza e a nós mesmos do que ao local físico ou geográfico onde nos encontramos.
Mistura
Seguimos assim, aguardando a abertura de fronteiras e celebrando a vida do dia a dia. Nossas memórias nos fortalecem e fazem parte de quem somos. Hoje elas misturam o Brasil e a Inglaterra, assim como já sonhamos misturando as duas línguas que falamos. Seguimos com elas, sempre adicionando, expandindo . Criando memórias novas no lugar que agora chamamos de casa.
2 Comentários
Ana, obrigada pelo texto! Estou vivendo algo parecido e foi muito bom ler suas palavras! Um abraço.
[…] Leia mais: A memória nos dá forças quando mudamos de país […]