Fases da imigração:
Sobre o medo e a insegurança
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, afirmou que “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Mas imigrar com filhos nos pede coragem hercúlea, que não sabemos se somos capazes de ter. Juliane Oliveira escreveu lindamente sobre isso em seu texto de março do Brasileirinhos pelo Mundo
Sem sombra de dúvidas, um dos dias mais apavorantes da minha vida foi justamente o da tão sonhada viagem. No total foram dois anos de preparação, entre pensar na possibilidade de imigrar, entender as possibilidades (trabalhando, estudando), escolher o país, trocar de país, me candidatar à vaga de doutorado, fazer toda a programação financeira, pesquisar escola, casa, cultura local. Nossa! Nem acredito que fizemos isso tudo em dois anos.
E a hora da mudança chegou, finalmente entraríamos no avião depois de despedidas dos amigos, de inúmeros almoços, idas a barzinhos, choradeiras infinitas com a família. E depois que as comissárias de bordo retiraram as bandejas do jantar, quando as luzes se apagaram e meus filhos se aninharam um ao outro e dormiram exaustos, eu me peguei com meu cachorro no colo (sim, ele imigrou conosco) e o desespero que não me permiti ter nos dois anos anteriores veio como uma montanha em cima de mim. Olhei para meus dois filhos e para meu cachorrinho e o primeiro pensamento foi “Meu Deus, o que eu estou fazendo com a vida deles?!” Se fosse possível, teria pedido ao piloto para dar um “cavalo de pau”, voltar voando (literalmente) para São Paulo e reassumir todos os postos, de escola das crianças a apartamento e trabalho.
E o motivo deste medo avassalador foi o de saber que a imigração nos traria muitas alegrias ao final da jornada, mas também muita dor e sofrimento no meio dela. Como eu poderia impor isso, de vontade deliberada, aos meus filhos? Sempre exigi muito de mim, mas não estaria exigindo demais deles?
Sobre a frustração e o tempo
No Brasil atendia em um consultório e sempre mostrava para as mães dos meus pacientinhos que as crianças ainda não têm a capacidade de pensar no médio e longo prazo, ao contrário de nós adultos. E que, como seres humanos, temos o movimento inconsciente de buscar atender às nossas necessidades e desejos o mais rápido possível. Mas em primeiro lugar precisamos diferenciar quais são as necessidades da criança (afeto, sono, alimentação, etc) e os desejos da criança (querer que compremos um brinquedo naquele momento, por exemplo). Na maior parte das vezes as necessidades devem ser atendidas no menor tempo possível. Já os desejos podem esperar, se é que poderão ser atendidos.
E um bom modo de nos guiar se devemos ou não atender aqueles desejos é pensar mais no longo prazo do que no curto. Independente de minha formação na área de saúde, em particular da saúde infantil, meus filhos passaram pela fase da birra e sim, meu filho mais velho, aos dois anos de idade, se jogou uma vez no chão do shopping fazendo o maior escândalo, porque queria um brinquedo que havia visto na vitrine. Eu tinha duas opções. A primeira seria atendê-lo rápido, comprando o brinquedo, por vergonha, para que ele parasse com a gritaria. Mas eu estaria ensinando a ele que provavelmente ele conseguiria muitas coisas fazendo escândalo e na base do grito. A segunda opção era engolir minha vergonha (quantas infinitas mães já não passaram por isso ao logo da história da humanidade?) e dizer, com bastante calma e firmeza, que ele poderia fazer o escândalo que quisesse, mas que não teria o brinquedo, porque aquele não era momento para comprar e tudo tem o seu momento.
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Na segunda opção o curto prazo era uma catástrofe (encarar um monte de pessoas me olhando, algumas com reprovação), mas o longo prazo era uma vitória (meu filho tendo noção de espera, de paciência, de controle do consumismo e muitos ganhos mais). Escolhi pela segunda.
O motivo de eu estar fazendo esse paralelo todo é que, como afirmou Einstein, o tempo é relativo. E frustrações, que são inerentes ao viver, recebem conotações diferentes a depender do tempo em que as analisamos. O que me acalmou no avião, na mudança para a Itália, que me trouxe de volta à racionalidade e me impediu de desesperadamente pedir ao piloto da aeronave para retornar ao Brasil, foi pensar no curto, médio e longo prazo. Sim, no curto prazo tudo seria medo, frustração e dor (a começar pelas saudades dos amigos, da família e do mundo conhecido). No médio prazo as frustrações estariam diminuindo e os momento de alegria voltando. No longo prazo meus filhos seriam cidadãos do mundo, globais, respeitosos de outras culturas, de outros modos de viver, fluentes em mais de uma língua. E isso fazia tudo valer a pena. Aliás, esse foi o motivo maior do desejo de imigrar.
Sobre lagartas virando borboletas
Já estamos há quase dois anos na Itália. Como previsto, o curto prazo foi bem difícil para todos nós. Acho que não há frustração maior nessa vida do que tentar se explicar e não conseguir, querer se comunicar e falhar. De ações básicas como pedir água com gelo, até ações complexas, como explicar que ficamos muito tristes quando percebemos que estávamos sofrendo preconceito, tudo é uma enorme frustração. Meu pequeno, na época com 6 anos, passou uma semana chorando que não queria ir à escola porque não sabia pedir para fazer xixi. Para mim, a melhor imagem dessa época é a da lagarta, lenta, esquisita, espinhuda, tentando caminhar e viver em um belo jardim, que em nada parece ser dela.
O médio prazo foi melhor. Também como esperado, as frustrações foram dando lugar a alegrias. Perceber que conseguíamos nos comunicar melhor, que estávamos dominando a língua, que já entendíamos expressões corporais, gírias, modos de se portar, foi nos dando uma satisfação, uma sensação de potência maravilhosa. Resumiria essa fase como “com calma e perseverança, posso muito!” Nesse período meu filho mais velho teve notas excelentes na escola, incluindo as de italiano, melhores que algumas crianças nativas. Não chamo a atenção disso pela competição (nunca estimulei isso em casa), mas pela satisfação pessoal dele em perceber que, se quisesse e se esforçasse, poderia muito. A imagem dessa fase é a da pupa. Nos fechamos um pouco, vamos vivendo nossa vida de modo mais introspectivo, entendendo o que é esse país e essa cultura e o que dela se encaixa em nós e vice-versa. Fase voltada para o interior, para a introspecção mesmo.
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E o longo prazo veio chegando de mansinho, sem que a gente percebesse. Me dei conta dele no mês passado. Meu filho mais velho tem construído uma linda amizade com um menino proveniente de um país muito pobre da África central. E um dia chegou da escola falando que seu amigo tinha contado, a pedido da professora, como eram as escolas na África. O amigo contou que estudava em uma escola sem janelas ou portas, muito quente e que era difícil se concentrar e aprender, pois as condições eram muito adversas. E meu filho me disse que entendeu o quanto nossa imigração havia sido diferente da experiência do amigo, que sua vida no Brasil e na Itália eram muito boas, que ele agora percebia como muitos imigrantes sofriam e que, se pudesse, lutaria muito na vida para que quase ninguém passasse pelo que seu amigo passou. Foi aí que percebi que o danado do longo prazo estava já entre nós. A lagarta virou borboleta e tudo valeu a pena.
7 Comentários
Luciana, me emocionei com o seu texto. Lindo! Obrigada!
Obrigada Thaís!
[…] ajudam bastante. Os textos Um choque cultura às avessas: da Suíça para os Estados Unidos e A lagarta vira pupa, que vira borboleta ilustram bem esse difícil processo de mudança de […]
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[…] a mudança chegou. Nunca senti tanto medo na vida! No meu texto sobre as Fases da Imigração escrevo bastante sobre isso. A imigração para mim veio em etapas. Acho que nos três primeiros […]
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