Após a publicação do meu texto Adoções forçadas em Inglaterra, fui contatada por uma brasileira que trabalha há muitos anos aqui no Reino Unido como midwife (a nossa obstetriz, comumente conhecida como parteira) alertando-me que somente uma depressão pós-parto (DPP) não é motivo para que crianças sejam retiradas da família. O sistema é muito mais complexo. Como considero muito importante esclarecer um assunto tão relevante, convidei-a para uma entrevista.
Suzan Correa vive em Londres há 15 anos e está fora do Brasil há mais de 25. É casada com um brasileiro e tem três filhos. Trabalha no sistema de saúde público britânico, o NHS, há cerca de 11 anos, onde iniciou sua carreira como midwife. Hoje, além de midwife, é doula e consultora de amamentação. Sente-se extremamente privilegiada em poder trabalhar com famílias e fazer parte do momento mais importante delas, que é o nascimento de um filho. Em abril de 2018 ela concedeu uma entrevista para a plataforma contando sobre sua experiência como obstetriz na Inglaterra.
MÃES MUNDO AFORA: Quando meus filhos nasceram a Health Visitor analisou minha casa e me perguntou se eu me sentia depressiva. É o procedimento normal?
Suzan: Sim, este é o papel da HV, além de dar suporte para a mamãe e a família. Aliás, este é o papel de todos os profissionais de saúde, incluindo midwives. Ela pergunta sobre depressão porque tem acesso a serviços que pode oferecer para ajudar nesse momento difícil. Não significa automaticamente a mulher ser tarjada e o serviço social acionado, muito pelo contrário.
É possível identificar a depressão pós-parto em um primeiro contato?
Uma pergunta difícil, pois a depressão pós-parto pode ser mascarada por vários outros sintomas. Porém, não cabe a uma midwife ou a uma HV diagnosticar alguém com depressão, mas sim reconhecer os sintomas e fazer o encaminhamento desta mulher para o GP (General Practice – clínico geral) ou os serviços apropriados. Mas é possível reconhecer sintomas na mulher logo no primeiro encontro.
As mulheres sentem medo em pedir ajuda em caso de depressão pós-parto?
Infelizmente devido a muitos tabus, informações sem fundamento de internet e o famoso “achismo” muitas mulheres que desenvolvem depressão tanto no pós-parto como durante a gestação não procuram ajuda. Acreditam que terão intervenção dos serviços sociais ou mesmo que a sociedade vai criticá-las como fracassadas por estarem passando por tal momento. A depressão deve ser desmistificada cada vez mais para que as mulheres possam reconhecer seus sintomas e ter acesso a ajuda.
Existe algum protocolo que o sistema de saúde segue para encaminhar as famílias para o serviço social?
Existe e ele inclui muitos aspectos, que vão desde de uma gestação na adolescência até uso de drogas, entre outros. Quando na consulta observamos algo, temos a liberdade de conversar com a família a respeito e fazer o encaminhamento necessário.
Em quais situações uma criança é retirada dos pais?
Em situações onde as crianças estão expostas a algum risco, seja este de violência, exposição a drogas/álcool, em casos de negligência, ou seja, não ter cuidado com a criança, entre vários outros. A depressão pós-parto nunca foi motivo para encaminhamento ao serviço social. Este procedimento somente acontece quando a mãe tem crises psicológicas, ou outras condições como bipolarismo ou qualquer outra condição mental. E nem mesmo nestes casos significa que o serviço social vai retirar as crianças dos pais. Em casos mais severos faz-se uma avaliação, visita residencial e elege-se a melhor maneira de ajudar.
Muitas mulheres não procuram ajuda quando estão com depressão por acreditar que fazendo isso vão perder seus filhos, o que NÃO É VERDADE! Por favor vamos desfazer esses mitos e quebrar esse tabu, pois por conta disso mais e mais mulheres estão sofrendo sozinhas sem ajuda por medo.
Tenho visto anúncios de famílias de acolhimento nas redes sociais, com treinamento e ganhos interessantes. Qual a sua opinião em relação a isso?
Estes são os casos de “foster care“, que são famílias que são treinadas para cuidar e receber crianças que são retiradas de suas famílias por um curto período. Aqui este sistema é usado pois não existem orfanatos. Minha opinião seria difícil de colocar aqui, pois ao mesmo tempo que eu acredito que é injusto, em outros casos vejo muito a necessidade deste serviço.
Se for pertinente, você pode nos dizer por que as crianças em idade escolar são orientadas a denunciarem os pais (cuidadores)? Você acha que esse sistema precisa ser revisto?
Porque sabemos que existe muito abuso que a própria criança não sabe que é abuso, pois para ela é uma coisa “normal”. Também existem casos de abuso físico, emocional e sexual que ocorrem dentro de casa e as crianças são ameaçadas caso contem para alguém. Aqui na Inglaterra a lei e muitas coisas funcionam de maneira diferente. O que em outros países pode ser considerado normal para a educação de uma criança, na Inglaterra pode ser considerado abuso. Eu não acho que deveria ser revisto, pois acredito que a criança precisa receber educação para saber reconhecer abusos, assim como saber que pode procurar ajuda.
Qual a relação entre o sistema de saúde e o social? É um método válido o hospital reportar casos de acidentes domésticos?
É uma relação profissional como qualquer outra, temos a liberdade de nos comunicarmos sempre que acharmos necessário, o que não significa fazer imediatamente um encaminhamento e a família perder a criança.
No caso dos acidentes domésticos, é um procedimento muito válido e que acontece com frequência. Envolve várias outras áreas profissionais além do serviço social, inclusive a polícia. Se existe uma desconfiança, o profissional de saúde tem por OBRIGAÇÃO fazer o encaminhamento. A melhor forma é discutir o assunto com o profissional da saúde e esclarecer qualquer dúvida antes que isso venha a acontecer. Ter tido uma vez envolvimento com o serviço social não significa que terá novamente, se o caso desta família já estiver encerrado.
Você já viu alguma situação de famílias que são reportadas para a assistência social por casos de acidentes domésticos? Por que isso acontece?
São reportados para o serviço social pois é da responsabilidade deles cuidar e proteger a família e as crianças e oferecer a ajuda necessária para cada caso. Não posso comentar em casos particulares, pois quebraria o código de sigilo que temos. Porém, já presenciei casos em que crianças foram tiradas dos seus pais por motivos variados, como violência doméstica entre o casal ou contra as crianças, entre outros.
Em caso de acidente doméstico, qual a sua dica para as famílias para que elas procurem ajuda sem temer problemas com o serviço social?
Em casos de acidente em casa, a melhor coisa é sempre ser muito honesto e estar disposto a receber o serviço social sem medo, pois eles percebem. E é neste ponto que eles vão se apegar caso percebam que existe ‘algo’ que precisa de mais informações. O assistente social perceberá se é um caso genuíno de acidente doméstico, pois somos treinados para perceber quando os pais estão usando isso como desculpa para encobrir um caso de violência. A tendência é ser cada vez mais exigente, pois o serviço social aqui já foi muito criticado por deixar casos sérios passarem despercebidos.
Você gostaria de deixar algum recado para mães brasileiras que moram no Reino Unido?
Gostaria de reforçar: caso você esteja com qualquer sintoma de depressão converse com sua midwife, sua health visitor ou o seu GP. Ninguém vai tirar seus filhos por isso, acredite! O interesse é apenas ajudar cada mãe a se recuperar e a manter as famílias unidas e saudáveis.
4 Comentários
Olá, Juliana, tudo bem? Estou me formando agora em Serviço Social, sendo que já estagiei em um grande hospital da cidade, em um serviço de acolhimento institucional (resumidamente uma instância onde vão crianças e adolescente que por qualquer motivo foram desligadas de seus guardiões legais, pais, avós, tios, entre outros) e, atualmente, em um Centro de Convivência de Crianças e Adolescentes, sendo assim, acompanho já algum tempo casos sérios referentes a violência física e mental contra crianças. Cheguei no seu blog por coincidência enquanto pesquisava mais sobre meu tema de Mestrado, por isso, lendo alguns dos seus posts sobre minha profissão e sua própria experiência com ela resolvi deixar este comentário, já que é uma visão recorrente. Enfim, o Serviço Social NÃO é uma profissão punitiva, muito menos para “xeretar” a vida das famílias acompanhadas. Pelo contrário, trabalhamos diretamente com a proteção social, ou seja, visando o melhor para preservação física, social e mental, nos casos citados aqui em seu blog, de crianças e adolescentes. Como te disse, esse “pavor” de assistentes sociais é muito comum, principalmente, entre mães e pais quando solicitados para reuniões referentes a seus filhos. Por esse motivo, sempre que eu inicio um atendimento com alguma família procuro reforçar que não é parte do meu trabalho punir nem retirar a guarda de ninguém. Até porque esta não é uma decisão do Serviço Social, que faz sim um relatório encaminhado ao juiz responsável (em casos judicializados), mas juntamente com outros profissionais, como psicólogos e até médicos. Essa decisão de retirada da guarda ou não parte do juiz, não do assistente social. Ao contrário da informação que é frequentemente propagada, o Serviço Social é uma profissão muito humanizada e lhe asseguro que não está em nossa gênese optar pela retirada de crianças de suas famílias originais, sendo recomendada apenas em casos de real violação dos diretos destes. Inclusive, nosso trabalho realizado no Acolhimento Institucional é justamente de restabelecer os vínculos rompidos dessas crianças com suas famílias, através de um trabalho feito com os próprios familiares. Até porque assistente social nenhum está trabalhando para julgar algum de seus usuários (termo utilizado para nos referirmos as pessoas que atendemos em nosso trabalho). Eu mesma acompanhei diversos casos em que, através do trabalho com outros profissionais, conseguimos que as crianças retornassem a suas famílias para um lar preparado e saudável para sua infância, que deve ser respeitada. Já referente ao acompanhamento de crianças e adolescentes que chegam em hospitais com acidentes domésticos, é, sim, parte do protocolo e de suma importância porque é a forma como percebemos violência sofridas não só pelas crianças como outros membros da família (acredite, isso acontece muito). Essa “investigação” que você vivenciou quando seu filho, infelizmente, se acidentou, não foi apenas para localizar uma possível violência, mas também para garantir a sua família qualquer benefício que vocês tenham o direito de acessar. Exemplo disso, determinado usuário quando acompanhado pelo Serviço Social pode ser orientado a procurar tal lugar para ter acesso a um benefício que nem ele mesmo fazia ideia que tinha direito! Evidentemente que casos de violência também são detectados neste processo. Eu procuro sempre também, durante o atendimento, enquanto faço alguns questionamentos a um usuário pontuar o motivo deste, já que é um direito dele entender porque está me fornecendo tantas informações pessoais. No mais, pense por outro lado, ter esse processo meio chatinho de ter a visita em sua casa e de ter que responder alguns questionamentos pode ter sido inconveniente, mas já passou, só que esse mesmo processo pode ter permitido que os profissionais percebessem violências em outras famílias (até salvado algumas vidas, de crianças como seus filhos) e orientado outras a irem atrás de direitos que auxiliam em determinados pontos complicados de suas vidas. Compreendo que nenhum sistema é perfeito e exitem erros, equívocos e até mesmo leis a serem revistas, mas o assistente social, em sua maioria e até mesmo por ética profissional, sempre estará do lado de seu usuário, nunca para julgar porque não é este nosso trabalho. No mais, espero que eu tenha trago um outro lado dessa profissão linda da qual eu tenho tanto orgulho e te convido a pesquisar mais sobre nosso trabalho, até bater um papo com algum assistente social, te garanto que irá se apaixonar e até perder um pouco do “pavor” hahahaha Um beijo enorme, Juliana e parabéns pelo sucesso do blog!
Ola Yasmin,
Muito obrigada pelo seu comentário, foi extremamente esclarecedor! Eu compreendo que ha coisas que parecem mentira, de fato quando chegamos aqui e temos filhos parece ter uma nuvem negra quando se fala em assistência social! Tivemos uma entrevista com uma midwife esclarecendo também que não eh tao ruim o sistema.
Grande abraco e sucesso em sua profissão.
Olá Juliana, tudo bem? Minha irmã mora na Inglaterra e deu à luz recentemente (vai fazer dois meses dia 09/09). Estamos suspeitando que ela está com depressão pós parto, mas ela está com receio de procurar ajuda e causar problemas de guarda. Meus pais estão com ela na Inglaterra e gostaria de um conselho seu. Como ela faria? Teria que conversar com a Midwife? Obrigada.
Ola Barbara,
Primeiramente parabéns pelo bebê, é sempre uma benção em nossas vidas. Minha sugestão é, não deixe de falar com a midwife ou a médica dela, porque eu por muito tempo deixei minhas emoções de lado e hoje sofro as consequências. Se ela está com sintomas, é bom conversar sim com a midwife até porque ter depressão pôs parto é normal.
Um forte abraco.
Juliana