A recompensa ao trabalho materno não pode ser o amor
Você se tornou mãe. Você sabe quando seu filho precisa tomar vacina. Você tem o telefone do pediatra gravado no celular. O da creche, da escola, da mãe do amiguinho também estão na agenda.
Você sabe quando precisa lavar roupa, porque vai faltar calcinha na gaveta. Ou porque as blusas de frio limpas estão acabando e elas demoram mais para secar.
Você vai às reuniões de escola. Conhece o nome de todas as professoras, assistentes e cuidadoras. Você sabe quem é o melhor amiguinho do momento e aquele que o empurrou já faz três meses.
Você separa os pares de meia para facilitar o acesso da criança na hora de se vestir. Você leu sobre Montessori, Disciplina Positiva, Waldorf. Mesmo levando mais tempo para executar algumas tarefas, você deixa as crianças participarem, pois leu que isso ajuda na autonomia delas. Comer com as mãos também. E você permite para que ela domine o movimento, ainda que suje mais e aumente a sua carga de trabalho.
Você se culpa por não conseguir comprar alimentos orgânicos ou por ter dado pizza e nuggets nessa semana. Você tenta variar os alimentos para que o aporte de nutrientes seja melhor. E muda a preparação ou a apresentação quando eles deixam de aceitar algum deles.
Você sabe qual o xampu que deve usar pros cabelos cacheados da sua filha, mesmo os seus sendo lisos.
Você estuda sobre criação feminista, antirracista, antitransfóbica. Você pesquisa como falar de sexo com as crianças.
Você escolhe brinquedos educativos. Lê sobre as consequências do excesso deles. E de como tornar do seu filho um leitor ávido.
Leia mais: Carga mental, maternidade e exaustão
Você planeja o dia deles, a semana, o mês, a vida. Você pesquisa escolas, médicos, tratamentos alternativos para aquele eczema que resiste em sair da pele da pequena ou para a rinite que ataca todo inverno.
Você acorda à noite, amamenta ou dá mamadeira. Troca tantas fraldas que nem sabe quantas. Aliás, é você também que sabe quando precisa comprar as fraldas e qual o tamanho atual delas.
Você cozinha, lava, passa, organiza, dobra, guarda. É você também que sabe em qual gaveta estão os pijamas, as blusas de frio e as de calor. Se as saias são do lado esquerdo ou direito da terceira gaveta da cômoda. Se as calças estão curtas ou rasgadas. É você que as repara ou manda repará-las. Ou passa na loja depois do mercado para comprar uma nova.
Você faz a lista de compras mesmo quando não é você que vai ao mercado, pois quer garantir que haverá frutas suficientes para a semana e não apenas para dois dias.
Naquela semana de fechamento do trabalho do companheiro, você ficou com todos os cuidados com as crianças. Na viagem dele a negócios também. E no dia em que eles ficaram doentes e foi preciso buscá-los antes na escola, foi você quem pediu para sair do trabalho. Afinal, o salário maior é o dele.
Foi você quem deixou o mercado de trabalho para cuidar das crias. A sua recompensa: o amor. Você trabalha tanto quanto qualquer outra pessoa, mas o seu pagamento é o amor. Você não ganha por hora-extra, você não tem pausa para o café. A sua recompensa é o amor!
Suficiente? Nem de longe. Enquanto o amor dos filhos for colocado como a recompensa para o trabalho feminino não-remunerado, as mulheres-mães continuarão em situação desigual.
Enquanto o amor materno for tido como superior ao paterno, a responsabilidade pela criação dos filhos continuará nas costas das mulheres.
Enquanto o amor for a recompensa, não haverá salário para o trabalho doméstico das mães, que permite que homens continuem enriquecendo. Você já parou para pensar nisso? Os seus filhos amam menos o pai pelo fato de ele cuidar menos, ser menos responsável pelo andamento da rotina, o bem-estar de todos? Se ele for um pai presente, creio que não.
Sabe aquele ditado “por trás de um grande homem, há uma grande mulher”, tão atacado por ser machista? Para mim, ele é tradução da realidade. A mulher continua atrás, continua possibilitando que homens cheguem alto.
Você já reparou que qualquer pessoa que trabalhe fazendo o mesmo serviço que você faz na sua casa deve receber por ele, mas você não tem o mesmo direito?
E ainda quando uma mulher decide não ter filhos, ela é julgada? Afinal, ter filhos é ser amada.
E isso tudo é apenas uma ponta do problema. Mães que estão em casa estão exautas e, muitas vezes, tentam empreender para ter uma renda, se sentem frustradas por terem deixado de “produzir” nos termos do sistema, não são valorizadas pelo que fazem, não conseguirão se aposentar e por ai vai…
Mães que saem para trabalhar precisam gerenciar a rotina dos filhos e da casa quando chegam do trabalho. Além de se sentirem muitas vezes culpadas por não estarem presentes.
Alias, qual o grupo que mais sofreu com a pandemia? Deixo aqui e aqui algumas reportagens sobre o assunto.
Por isso, a recompensa ao trabalho materno não pode mais ser o amor. O trabalho feminino não-remunerado continua sendo TRABALHO. Como mudar isso? Ao meu ver estudando, tomando consciência da situação, buscando mudanças no nosso entorno, e votando em pessoas que possuam projetos para a pauta feminista, cobrando dos governos avanços como uma licença-paternidade decente, ficalização de empresas que demitem mulheres no retorno da licença-maternidade, igualdade de salários etc.
Deixo a reflexão e também duas fontes para expandirmos ela:
- O lado invisível da economia, Katrine Marçal
- Calibã e a bruxa, de Silvia Federici
3 Comentários
Sem dúvida nenhuma!!!! Esse tema é mega urgente, inclusive tenho discutido ele bastante no IG! Acho que nessa lista do que fazer eu adicionaria bem especificamente cobrar o próprio parceiro por um salário! Enquanto fomos só nós a lutar por isso, as mudanças significativas demorarão décadas!!! Aqui em casa nos conversamos muito, eu expliquei mil vezes que conta conjunta não é salário, e chegamos em um valor que não afetaria as contas de casa, mas que pra mim seria significativo. Mudar o entorno tem de ter também viés capitalista uma vez que nós estamos inseridos nele, por mais que eu acredite que o feminismo real só seja possível quando o capitalismo cair!!! Obrigada pelo texto!!!
Amei o texto, Mariana! Temos mesmo que levar esta luta adiante e seu texto mostra caminhos práticos para isso. Parabéns!
Incrível a reflexao, Mariana. Parabéns pelo texto.