O terceiro lockdown na Inglaterra aconteceu de forma súbita, depois das festas de final de ano. As crianças tiveram aulas na escola em uma segunda-feira e, no mesmo dia à noite, o primeiro-ministro já anunciava um fechamento completo da sociedade.
Em meio à frustração, recebi a notícia de que o cargo de assistente em uma escola primária para o qual eu havia me candidatado ainda seria necessário. O RH me deu uma carta de key worker (trabalhador essencial) e no dia seguinte eu já estava na escola, que está aberta para filhos de pais e mães também key workers e crianças consideradas vulneráveis.
Inverno
O lockdown no inverno foi desafiador. Tentei, sem muito sucesso, explicar aos amigos e familiares no Brasil como era a sensação. Em março, abril e maio, podíamos sair para o quintal, ver as flores nascendo e curtir o sol. Mas o inverno já é um período mais árduo por si só. Portanto, tivemos que descobrir as belezas da estação indo para o lado de fora o máximo possível, mesmo em temperatura negativa.
As regras do governo permitiam uma saída diária para exercícios físicos e assim fizemos, a fim de manter a saúde física e mental. Tivemos a sorte de ter muita neve neste inverno, algo que não é tão comum no norte da Inglaterra.
Crianças sendo crianças
O trabalho na escola me deu de presente a possibilidade de ter uma rotina parecida com algo “normal” neste período desafiador. Sair de casa de segunda a sexta-feira em horário determinado e encontrar com outras pessoas fora da família nuclear já oferece um certo tom de “normalidade”.
Sou assistente em uma turma de crianças de quatro a cinco anos de idade em uma escola pública primária. Conviver com elas, em especial, é um enorme privilégio. Apesar de já terem incorporado os hábitos de passar álcool em gel e lavar as mãos mais constantemente, elas não sabem em detalhes o que se passa em termos de pandemia. Estão mais interessadas em outros assuntos e acho graça em vê-las discutindo sobre os mais variados temas. Elas já se acostumaram com o fato de eu estar usando máscara todo o tempo em que estou na escola e conversam comigo sem nem mesmo mencionar este acessório no meu rosto. E eu sigo sorrindo por trás da máscara, esperando que as crianças consigam ver a minha expressão.
Miss, pode me ajudar?
A escola é um lugar onde a cultura local é bastante marcada. Sigo aprendendo diariamente a compreender os códigos usados nesta instituição. Como se dirigir a uma criança em língua inglesa? Que palavras usar no dia a dia? Que tom usam os funcionários quando conversam entre si? Como se vestem, o que servem no almoço?
Uma das peculiaridades da escola na Inglaterra é que toda a equipe é chamada de Miss, Mrs ou Mister, seguido pelo sobrenome, o que é bastante curioso para alguém vindo do Brasil. Achei mais fácil dizer para as crianças que meu nome é Miss Ana. “Miss Ana, pode me olhar subindo nesse brinquedo?”, “Miss Ana, estou com saudades da minha mãe.” “Miss Ana, quer saber? Eu gosto muito daqui.”
Historicamente, Miss é usado como um título para uma mulher solteira e Mrs para uma mulher casada. E Ms pode ser usado para qualquer um dos casos ou quando não se quer associar o estado civil a uma maneira mais formal de se dirigir a alguém.
Já me acostumei a responder “Yes?” quando alguma criança me chama: “Missss!”. Lembro do debate levantado por Paulo Freire no seu livro “Professora sim, tia não” sobre a ideologia que os termos carregam. Ele coloca, ainda, que não existe ensinar sem aprender. Aprendo muito dentro da escola. Entre si, professores e assistentes também se chamam de Miss e Mister e isso às vezes reforça um tom fraternal e cooperativo no espaço escolar. Mas o tema é polêmico. Este artigo escrito por uma professora fala sobre o fato de que ser chamada de Miss (ou Mrs) em uma escola não fala sobre estado civil. É uma indicação de respeito.
Contato físico
As crianças estão divididas em bolhas. A equipe toda, eu incluída, faz testes de coronavírus duas vezes por semana em casa. Quando comecei a trabalhar, a escola estava bem mais vazia, pois só estava aberta para algumas crianças (aquelas consideradas vulneráveis e filhos de trabalhadores essenciais).
Mas estes alunos continuam andando de mãos dadas, dando abraços uns nos outros (e em mim), e brincando de forma muito física na hora do intervalo. Faz muito bem para mim vê-las descendo no escorrega agarradas umas nas outras. Ou dividindo uma bicicleta entre três crianças (sim, isso é possível) e brincando juntas com uma bola. Coisas simples, mas necessárias para crianças em qualquer lugar do planeta.
Imaginação
“Miss Ana, você pode escolher ser um goodie (do bem) ou um baddie (do mal) e podemos nos transformar em quem a gente quiser, na hora que a gente quiser”, diz um garotinho no meio de uma brincadeira.
“Miss Ana, fiz um cupcake de morango para você.”, diz uma menina me passando um balde com areia. As crianças seguem inventando seus mundos dia após dia na escola. Tenho sorte de fazer parte desse universo, especialmente neste momento. E esqueço por algumas horas que estamos no meio de uma pandemia, que as fronteiras com o Brasil estão fechadas e que o Coronavírus ainda está deixando muita gente doente ao redor do globo. “Podemos nos transformar em quem a gente quiser”, lembro.
Hora de ir embora
Já trabalhei em hospitais aqui na Inglaterra, mas o ambiente da escola é infinitamente melhor, na minha opinião. O aprendizado é constante, as perguntas e hipóteses surgem a todo momento. Aprendo com essas crianças não só a falar inglês (quem sabia como falar “batatinha frita 1, 2, 3” ou como se referir ao jogo de “bobinho” em inglês?) mas a olhar as coisas de um jeito diferente, mais criativo e livre. Os adultos andam muito chatos. Na hora de ir embora da escola, um menino segura a minha perna e diz: “Miss Ana, você não pode ficar mais um pouco?”.