Depois do susto inicial de descobrir que estava grávida, comecei a curtir a gravidez acreditando que teria um menino. Quando, no quarto mês, ela se revelou, meu coração se encheu de amor e medo: vou dar à luz a uma menina nesse mundo cheio de perigos, crueza e preconceitos. É tão difícil ser mulher, ainda hoje. Trabalhoso. Cansativo. Frustrante, muitas vezes. Então, junto com a gestação da minha filha, eu estava gerando também uma mãe com a responsabilidade de criar uma mulher forte, consciente de seu poder, o mais liberta possível de rótulos e pré-determinações, segura e feliz. Esse é o desafio de criar meninas hoje.
“Os professores serão ótimos em ensinar matemática, ciências, artes e música, mas você mesma terá de lhe ensinar orgulho”, eu li muito tempo depois no livro “Para Educar Crianças Feministas”, de Chimamanda Ngozi Adichie.
Não é fácil. A todo momento ao longo desse caminho me deparo com meus próprios limites e preconceitos. Com a minha própria dificuldade em lidar com a sua liberdade, opiniões, escolhas, vontades e personalidade. Com as minhas falhas em ser o exemplo de mulher independente e bem resolvida que eu imaginei para ela. E aqui não estou me referindo a essa necessidade (que 99% das mães têm e contra a qual lutamos diariamente) de ser perfeita e a culpa gerada por não ser. Isso também existe. Mas, nesse caso, falo do desafio da própria desconstrução do machismo que temos que enfrentar e realizar em nós mesmas. Deve ser um exercício diário. Mas, quando nos vemos no papel de mãe de menina, é uma obrigação.
Porque eu fui criada por mãe mineira. Cheia de “modos” e regras. Para “me comportar como mocinha”. Fui uma adolescente e jovem católica (que sou até hoje) e extremamente rigorosa (muito, muito menos hoje em dia). Mas, porque somos uma e somos várias, eu também sempre fui questionadora. E, como gostam de nos rotular, chamada de “abusada”. “Ousava” dar a minha opinião, não obedecer ordens de olhos fechados, procurar a origem de determinadas regras, transgredir.
Adichie dá a dica – meninas são inegavelmente diferentes em termos biológicos, mas a sociedade e a cultura exageram essas diferenças: “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, mais livres para sermos quem realmente somos, se não tivéssemos o peso das expectativas do gênero” (“Sejamos Todos Feministas“, Companhia das Letras).
Minha filha chegou e bagunçou a “zorra toda”. Ela não se encaixa nos estereótipos. Ela é uma pessoa, não um padrão. É loirinha dos olhos azuis, mas não curte princesas. Nem super heroínas de maneira geral. Ela adora boneca – mas não bebês ou Barbie, ela gosta de miniaturas. Lego é o seu brinquedo preferido. Não gosta de calça, prefere saias, vestidos e shorts. Não usa brincos, mas adora batom vermelho. Ama video-game (Minecraft para jogar, RPGs para assistir o pai jogando – para o desespero da mãe). Quer ouvir música o dia inteiro, mas não suporta dançar na frente de ninguém.
Ela é sensível, o que facilmente pode ser confundido (inclusive por mim e seu pai) com frágil. Mas ela caminha para os seus oito anos de idade cheia de respostas. E, nessa mudança de país, tem se mostrado a mais resiliente de nós três. Uma verdadeira fortaleza.
Sua cor preferida é o azul, o que me deixa extremamente alegre. Como uma coisa tão boba e pequena pode deixar uma mãe tão orgulhosa? Bom, você já deu uma olhada nas lojas de roupas de crianças e brinquedos? Já foi num chá de bebê de menina? Pois é – o mundo infantil feminino é uma paleta de mais do que 50 tons de rosa. Não gostar de rosa é a primeira grande quebra de padrões!
E foi algo natural dela, nada que eu tenha forçado. Claro, apresentei as opções, variei o repertório, ampliei as escolhas. Porque fui aprendendo e me podando a todo instante – ela tem o direito de escolher, inclusive escolher o rosa como a sua cor. Porque ser feminista não é odiar o masculino ou feminino, é não aceitar esses rótulos e ser quem se é. “Se não empregarmos a camisa de força do gênero nas crianças pequenas, daremos a elas espaço para alcançar todo o seu potencial.”

Imagem: Maraisa Fidelis, blog Beleza Interior
Já parou para perceber as personagens femininas que até bem pouco tempo dominavam os livros, desenhos, bonecas, fábulas? É verdade que isso está mudando. Os últimos anos foram uma explosão de heroínas que não precisam de príncipes para salvá-las e que têm a sua própria agenda. Assim como as cores fortes e diversificadas têm aos poucos invadido as araras das lojas de criança. Mas as estampas, dizeres e personagens mais legais continuam na seção masculina. Temos um longo caminho a percorrer!
No grupo de amigos, acabada a brincadeira na piscina, as meninas com não mais de três anos de idade saíam e as mães íam correndo para cobrí-las com a toalha ou levavam ao banheiro para trocar as suas roupas. Os meninos? Tiravam os calções ali mesmo e colocavam suas roupas secas – sem que precisassem se cobrir ou fazer “cabaninha”. Em dois minutos, estavam prontos para brincar.
Mas, como mulheres somos criadas, desde cedo, a ter vergonha do nosso corpo. Gostam de chamá-la de “pudor”, de travestí-la de “o problema são os outros olhando”. Mas é só a gente reproduzindo costumes, conceitos e amarras. Porque com três ou quatro anos de idade deveríamos ser apenas crianças e, para bem da verdade, nem usar biquínis (pelo menos, não usar aqueles sutiãs ridículos e inúteis que são feitos para nada, já que nada existe ainda para esconder – esconder de que? por que?). Mas as meninas usam, porque as mães compram e colocam nelas.
“Ensinamos as meninas a sentir vergonha. ‘Fecha as pernas, olha o decote.’ Nós as fazemos sentir vergonha da condição feminina; elas já nascem culpadas. Elas crescem e se transformam em mulheres que não podem externar seus desejos.” (Chimamanda Ngozi Adichie)
Nos aniversários, os meninos ganhavam carros, dinossauros, aviões, bolas, ferramentas – ou livros de carros, dinossauros, aviões ou super-heróis. Para as meninas, bonecas, cozinhas, roupas ou livros de princesas. A únicas interseções eram as massinhas de modelar – mas até os moldes eram diferenciados por gênero.
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Todos faziam natação. Mas o futebol e judô da escola eram para os meninos. Para as meninas, o ballet e a ginástica rítmica. Uma ou outra mãe arriscava a filha na capoeira – mas eram sempre as meninas “diferentes”. Há ilhas de exceções e aos poucos as coisas estão mudando. Há cada vez mais meninas nas escolinhas de futebol do condomínio. Mas elas ainda não são nem 5% do time. Ainda temos um longo caminho a percorrer.
E nesse caminho, as mães e pais de meninos são peças fundamentais. Estamos criando novas mulheres para um mundo mais justo e igualitário. Um mundo em que homens e mulheres não se sobreponham, mas caminhem lado a lado se ajudando e respeitando, valorizando o outro como indivíduo. Mas não podemos fazer isso sozinhas. Precisamos de homens preparados para esse mundo. Que possam colaborar. Que se enquadrem e sejam felizes nesse novo modelo. O único possível. Vamos todas e todos nesse processo de desconstrução do nosso machismo. Porque, como indica Adichie em “Sejamos todos feministas” (págias 256 e 261), FEMINISTA é a pessoa – homem ou mulher – “que acredita na igualdade social, política e econômica.” “É a pessoa que diz: ‘sim, existe um problema de gênero ainda hoje e temos que melhorar. Todos nós, mulheres e homens, temos que melhorar'”.
17 Comentários
Isso mesmo, Carol, as identidades de gênero também podem ser uma prisão para todos/ todas regulando as singularidades que afloram e que buscam a realização!
Carinho para vc e filhota neste dia da Mulher, feito por ora para a gente pensar e pensar!
Aos poucos vamos quebrando esses grilhões e nos libertando – a nós mesmas e as que estão ao nosso redor. Dia a dia, com muita reflexão e mudança. Beijos e saudades!!!
Lindo! Consegui enxergar alguns “ deslises” meus …. sempre há tempo para consertar! Criar uma filha em dias atuais não é tarefa fácil!
Um beijo
Catinha
Prima, a maternidade é um exercício diário de descobertas, tentativas, erros, acertos, correções. MAs emos umas às outras par anos ajudar no caminho. Vamos juntas construir um mundo melhor através da formação de mulheres incríveis como as que temos em casa! <3
Aprendendo e vencendo conceitos (pré) e estereótipos com os filhos há 38 anos, adorei seu texto e me alegrei com sua sensibilidade para lidar com o assunto, amplo e cheio de particularidades. Viva a biodiversidade, abaixo os estereótipos, rosa não é cor de menina, azul não é cor de menino, somos todos seres multicoloridos. Parabéns!
Viva!!!! <3
Essa carioca sempre mandando bem na escrita!!! Óbvio que não seria diferente no dia da mulher! Mas escreveste lindamente Carol. Não adianta exigir apenas das mães de menino as mudanças do machismo se não mudar a cabeça enrustida de “pudor” e “culpa” das nossas futuras gurias-mulheres!
Com certeza, gaúcha! Vamos na missão de libertar as mulheres e homens do machismo, do pudor culposo e dos preconceitos que transformam esse mundo num lugar muito mais triste. Libertas que sera tamen !!!
Arrasou no texto, Carol! Eu tenho um menino e uma menina. E me sinto frustrada muitas vezes com essa tão demarcada linha entre os gêneros, que eles acabam absorvendo do entorno. Mas é isso, sigamos desconstruindo e caminhando na esperança de que nossos filhos vivam num mundo melhor. <3
Sigamos perseverantes, Rhaniele. O caminho é longo e tortuoso, mas a recompensa é um mundo com pessoas melhores e nossos filhos felizes!
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