O bullying nas escolas americanas: antes do homeschooling
Você estava comigo no mês passado, quando eu comecei a contar a história de como — dolorosamente — se deu a nossa iniciação ao Homeschooling, aqui na Califórnia? Se não, clica aqui para ler.
Antes de continuar essa história, preciso frisar para você a ideia de que o Homeschooling é uma mudança de paradigma de vida familiar, em ultima instância, mudança de paradigma de visão de mundo, e por consequência, de educação.
Homeschooling é um processo que envolve a família inteira, extirpando a frio aquela ideia de educação ministrada por terceiros, em que uma professora “sabe tudo” é a principal agente que empreende o milagre de “produzir o aprendizado” na criança. O papel dos pais nesse modelo, seria o de “expectadores e indutores” das ideias fomentadas através do paradigma escolar, ou quando muito, participantes ferrenhos das reuniões, muitas vezes tidos como causadores de “problemas”, porque discordam demais da professora.
Já viu isso, né?
Com o Homeschooling, te digo “tabajaramente” que esses problemas se acabaram. Porém, te digo também que o mundo como você conhecia antes desaba tijolo por tijolo, lentamente e muitas vezes, dolorosamente.
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Comigo, confesso que vários tijolos vieram ao chão, seguidos de muito medo, angústia e inquietação.
Vou explicar: muita gente imagina que o mundo já foi criado com escolas imperando nele, concorda?
Imagina a cena idílica: você lá no seu país, seja ele qual for, como mãe perfeita na sociedade perfeita, que é composta por famílias com filhos, todos frequentando uma super melhor escola, perfeita para educar essa criançada maravilhosa para um mundo melhor.
Só que não, amiga. O mundo é muito melhor do que isso, eu te asseguro. E estou só no começo dessa jornada.
Foi com a experiência do bullying sofrido pela nossa filha mais nova que acordamos para uma realidade de educação que, felizmente, existe aqui nos Estados Unidos, e pela qual cada ser que faz parte da família é responsável, não mais um Governo qualquer.
Mas antes de continuar, preciso também te dizer que bullying é um mal que não foi criado exclusivamente pela escola, mas que está sendo difundido por essa instituição de forma massiva e crescente, especialmente aqui nos Estados Unidos.
O bullying existe todos os dias nas escolas americanas, em menor ou maior grau, mas sempre presente, massacrando crianças em ambos os seus papéis, seja no de agressor ou no de vítima. E conosco, o bullying aconteceu como para muitos outros estrangeiros, acredito eu.
Vivemos aqui na Califórnia há quatro anos apenas, sendo uma família de estrangeiros de classe média-melhorzinha, eu diria.
Sou descendente de espanhóis e italianos, enquanto meu marido é descende de japoneses. O trabalho dele, como você já adivinhou, é na área de engenharia de tecnologia, que aqui em San Francisco é muito bem remunerado.
Nossas duas filhas falam inglês perfeitamente sem sotaque e são bem comportadas de verdade mesmo, porque essa coisa de “polidez”, para nós, é muito importante.

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Nossa filha mais nova é bem mais introvertida do que a irmã e adora animais, quaisquer que sejam eles: minhocas, aranhas, gatos, patos, cachorros, ratinhos, tudo, minha amiga, praticamente de tudo quanto é bicho essa criança gosta, se interessa e quer proteger.
Daí você já poderia me dizer que ela é um “prato cheio” para o bullying, e eu, com pesar, concordo com você.
O fato é que o bullying é exercido por agentes que se encontram em uma posição de poder em relação à vítima. Nossa filha, por ser tímida e bem comportada, não conseguiu se defender dos insultos, simplesmente porque ela não é desse tipo de pessoa que ofende e esculhamba os outros. Ela não sabe fazer isso nem com a irmã e para piorar o quadro, ela tende a desculpar fácil.
Na escola pública regular americana , a pessoa precisa aprender a ser agressiva ou vira a vítima do bullying. Isso foi o que a professora e o diretor nos disseram, juntamente com o que esperavam da nossa filha: que ela aprendesse a se defender sozinha.
No entanto, destratar pessoas é um comportamento, para mim, absolutamente execrável. Mas o pensamento americano com o qual nos deparamos a partir dessa experiência é o de cada um por si, os mais fortes são os que sobrevivem e se sobressaem; se nossa filha é mais fraca, terá que aprender a se defender sozinha para fazer parte dos mais fortes, e em sua vez, demonstrar a sua força humilhando outros mais fracos. Simples e cruel assim.
Não houve nenhuma medida ou plano de ação proposto efetivamente por parte da docência ou da direção da escola nesse distrito escolar, que é um dos mais ricos e renomados da Califórnia.
Nós, os pais, poderíamos ter entrado com um processo e arrastar essa “sofrência” por mais um longo tempo, o que poderia nos ser muito mais prejudicial no futuro, por diversas e variadas razões que podem muito bem ser embutidas na expressiva palavra “retaliação”.
O fato é que fomos todos feridos, mortalmente. Resolvemos tirar nossa filha daquela escola e procurar outra que pudesse acolhê-la naquele ou em outro distrito escolar, não importava. Então é que veio o baque: nossa filha já tinha desenvolvido algo como uma “sindrome pós-trauma”, haja vista que os ataques perduraram por mais de oito meses. Assim, ela não podia ver uma criança em local público, que começava a tremer descontroladamente e a chorar de pânico.
Esse comportamento foi se agravando e passou a englobar todo ser humano, não precisava ser criança; assim, a presença de qualquer pessoa desconhecida em locais públicos causava nela um tremor incontrolável e um choro convulsivo.
Tentamos de tudo, desde ir com ela aos lugares de que ela mais gostava, como restaurantes, parques, zoológicos…, porém o resultado era sempre o mesmo: tremedeira incontrolável e choro desesperado.
Nossa filha passou 4 meses sem conseguir sair de casa, a não ser para ir ao consultório da terapeuta especializada em traumas causados por bullying. E só conseguia permanecer nesse local porque a terapeuta é uma pessoa muito competente, além de doce e tem uma sala que mais parece um paraíso infantil, com os mais variados brinquedos, até areia de praia ela tem ali.
Consegue sentir a gravidade da coisa? Foram 4 meses em que ela ficou sem conseguir ver gente desconhecida, pois tremia descontroladamente e começava a chorar desesperadamente.
Não conseguiu ir à festa de aniversário da irmã, não conseguiu participar do almoço de dia dos pais com a família…foram várias as situações sociais que tiveram de ser canceladas pelo mal que o “bullying” causou à nossa criança. Até nós, seus próprios pais, ela não conseguia suportar a presença, tinha que semi-fechar os olhos para nos olhar e convivermos minimamente.
Durante esse período, a matriculamos em uma escola não-presencial, que ela frequentou durante 3 semanas apenas, pois o fato de ter que ir à escola para realizar os testes a descontrolava.
Assim demos início ao Homeschooling, já começando diretamente por uma de suas facetas mais desafiadoras e interessantes, o Unschooling, já que para nós não havia outra escolha. E foi então que um novo mundo começou a se descortinar para nós.
Você já ouviu falar sobre Unschooling?
Não conhece? Ah, então você vai estar comigo no próximo post para saber de mais essa.
13 Comentários
Estou chocada que a escola não fez nada contra os bullyings! Realmente vejo essa posição de aprender a se defender, MAS ISSO NÃO PODE EXIMI-LOS de fazer algo para evitar mau comportamento ou ensina-los a se comportarem respeitando os outros. To aqui em NY revoltada!!! Forca ai
Oi Fernanda, então, é revoltante sim…mas simplesmente eles não entendem altruísmo/respeito como qualidades nessa escola. Para muitos americanos, a vida é uma competição incessante e a criança já tem que aprender a arrancar sangue desde pequena, sem chorar pela dor própria ou do outro. Essa é a lei nessa escola, que faz parte de um dos distritos mais ricos aqui do Norte da Califórnia, em que moram artistas, atletas, gente instruída! Isso é o que mais me marcou, pois eu achava que cultura e riqueza material automaticamente tornavam as pessoas melhores seres humanos, exatamente pelo fato de pessoas assim não precisarem da luta pela sobrevivência. Mas vamos seguindo, porque tudo é para o bem e nem toda criança é feita para a escola, eu também não sabia disso. Obrigada pela força! Um beijão.
Que dificil Flávia….imagino o quão dificil foi para a familia toda! Espero que a situação esteja melhor. Abraços
Oi Isabela, obrigada querida! Está tudo muito melhor sim, estamos caminhando. Muito obrigada pelo carinho! Beijos!
No Brasil pensamos e agimos diferente quanto essa questão do bullying. Não que não exista, mas a cultura é outra. Sempre fui a menor e mais fraquinha da turma, mas nunca passei por isso. Creio que isso faz parte da cultura bélica estadunidense. Aqui no Brasil a visão de “professor que sabe tudo” também é coisa do passado, ao menos nas grandes redes públicas. Estamos sempre buscando uma maior participação das famílias. Creio que na nossa realidade, educar em casa não seja uma boa opção, pois não são raros os casos de abuso, de diversos tipos, descobertos por causa da atuação de educadores. É interessante ver como caiu por terra está discussão aqui no Brasil com o afastamento social durante a pandemia. Realmente não ví mais ninguém defender essa idéia é até mesmo este governo que antes levantava essa bandeira, já a esqueceu num canto.
Oi Flávia, me identifiquei muito com o seu texto. Espero que sua filha e toda a família estejam se recuperando bem da loucura que é o bullying. Eu morei na Florida dos 9 aos 15 anos. Sofri bullying no início e depois aprendi a ser forte, passando de vítima à agressora. De fato, como você descreveu, esta é vista como a única forma de “sobrevivência”. Ou você aguenta e se exclui ou você passa a fazer parte dos agressores. É como se não tivesse meio termo. Muito triste esta realidade americana, parece que todos viveram desta forma, todos passaram por situações assim então é esperado que seu filho passe pela mesma coisa. Lembro perfeitamente dos meus amigos brasileiros comentando sobre o High School e como seria desafiador vencer os bullies mais velhos (de 16, 17 anos). É uma realidade que te acompanha até a formatura. O pior é que todos sofrem. A vítima, óbvio, mas também o bully, que muitas vezes está naquele papel apenas para mostrar para os outros que é capaz de ser da turma “cool”. Hoje vivo na Noruega com a minha filha de 5 anos, que estuda em uma escola internacional. Espero que aqui não tenha a mesma cultura de bullying como nos EUA, mas com certeza encontraremos outros problemas no caminho. Afinal, nenhum lugar é perfeito. Muita sorte pra você na nova caminhada e parabéns por tirar sua filha deste ambiente que deveria ser incrível e ecolhedor mas infelizmente, não é. Beijos!
Oi Mariana, muito obrigada pelo apoio e pelo relato! É exatamente isso que sinto, uma loucura, uma falta de ponderação, de empatia *humana* pelo outro, que é uma criança. Até no ambiente dos animais mais selvagens existem o respeito e o instinto de proteção entre as espécies em relação aos seres mais desprotegidos. Os seres humanos estão sendo deturpados desde pequenos aqui nas escolas nos EUA. Acredito que na Noruega, pelo que ando lendo, seja diferente. Conte um pouco sobre sua experiência na escola daí, adoraria saber mais! Muitos beijos e muitas bênçãos para vocês!
Um texto muito comovente com a história de sua linda filha mais nova. Me solidarizo a essa realidade que precisa ser combatida é extremamente criticada. A escola precisa cumprir sua função social que vai muito além da aprendizagem, mas formar o sujeito para a vida inteira.
Oi Socorro! Que bom te ver por aqui!Sim, a função social da escola se perdeu, na minha opinião. Está na hora de serem pensadas para o Brasil outras formas de educação e não de escolarização, unicamente. Milhões de beijos! Obrigada por ter lido :-*
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