Meus filhos vivem numa bolha em um mundo racista
Os meus filhos podem se banhar num riacho, catar pedrinhas numa floresta, colher flores no caminho da escola até em casa, sem pressa e sem medo. Eles vivem numa bolha.
Os meus filhos podem andar na rua sem serem alvos de olhares desconfiados, passos corridos e bolsas seguradas. Ao contrário, na maioria das vezes, eles recebem olhares afetuosos e empáticos de estranhos, que se divertem com a travessura e alegria deles. Eles vivem numa bolha.
Os meus filhos podem entrar em lojas, fazer bagunças nas prateleiras, correr pelos corredores dos supermercados sem terem um segurança os seguindo para checar se vão pegar algo. E se algum dia eles saírem do mercado com um chocolate no bolso, eles não serão julgados por isso. Eles vivem numa bolha.
Os meus filhos vão poder pular muros, subir em árvores, usar capuz, fazer uma corrida matinal, usar qualquer roupa, dirigir um carrão que isso não significará absolutamente nada na vida deles. Eles vivem numa bolha.
Os meus filhos, quando crescerem, podem à minha revelia experimentar alguma droga com os amigos e, se forem pegos, não serão sentenciados como traficantes, no máximo como um usuário que precisa de tratamento. Mesmo fora da lei, a lei será mais condescendente com eles. Estamos em um mundo racista. Mas meus filhos….Eles vivem numa bolha.
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Os meus filhos não viverão o temor de verem o carro dos seus pais ser alvejado por 80 tiros a caminho de um batizado, sem qualquer razão, ou a sua casa metralhada, enquanto brincam. Meus filhos não precisarão usar um uniforme escolar para protegê-los em vão de uma violência que continua os matando e eu não vou precisar ouvir “eles não viram que eu estava com a camisa da escola, mãe?”. Meus filhos não serão os alvos das balas perdidas (ou achadas?) ainda na barriga de suas mães. Eles vivem numa bolha.
E sabem por que os meus filhos não passarão por qualquer uma dessas situações? Porque eles são brancos. Eles vivem numa bolha de privilégios, e o maior deles é serem brancos num mundo estruturalmente racista. Porque ser negro é uma sentença de morte. Porque a vida do negro vale menos. Porque a cor da pele antecede a história das pessoas pretas e dizem sobre elas, sem elas terem a oportunidade de dizerem sobre si.
Meus filhos precisam saber o que é privilégio e reconhecê-los. Eles precisam entender que o privilégio branco não é fruto de direitos e méritos. Eles não podem acreditar na falácia do racismo reverso. Eles não podem se sentirem discriminados diante de políticas afirmativas que visam reparação histórica. Eles precisam entender que todas as vidas importam, sim, mas algumas importam menos no nosso mundo e não reconhecer isso é silenciar um movimento que clama por reparação, por justiça e não por mais direitos que outros grupos.
Porque a geração deles precisa ser melhor do que a minha, que ainda se recusa a reconhecer que existe uma supremacia branca e que insiste em não se colocar como parte do problema. Nós precisamos falar sobre racismo com os nossos filhos sem medo e não fingir que ele não existe dizendo que somos todos iguais. Embora desejamos que fôssemos todos iguais, o mundo não é assim. Por que mentir?
É necessário conhecer as estruturas racistas em nossa sociedade, se policiar, se desculpar. Precisamos de pessoas pretas ocupando espaços de poder e de fala. Precisamos sair do centro de fala e dar voz a quem sempre foi oprimido e teve as suas histórias silenciadas por séculos. Precisamos ser aliados dessa mudança.
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Protestos antirracismo vêm correndo o mundo após assassinato de George Floyd. Na Inglaterra, na cidade de Bristol, manifestantes derrubaram a estátua de um traficante de escravos, erguida em 1895, e a jogaram no rio. O traficante ficou rico transportando para as Américas nada menos do que 80 mil pessoas, das quais 20 mil morreram no trajeto.
Isso não é apagar a história, mas ressignificá-la. É um acontecimento que marca o ano de 2020 como o ano no qual não se foi mais tolerado símbolos e homenagens a pessoas que não representam o mundo que queremos viver. O prefeito de Londres, inclusive, já anunciou que todas as estátuas da cidade relacionadas à escravidão serão revistas.
Racismo não é coincidência. Racismo não é natural. E a gente pode mudar isso não sendo essa pessoa que nega a existência dele. Como pais de crianças brancas, precisamos falar sobre isso para sairmos dessa bolha que mata. Mais do que isso, precisamos querer sair dessa bolha. Como pais de crianças brancas, precisamos nos solidarizar com pais de crianças pretas, que temem mais do que nós pela vida de seus filhos, que têm mais chances de serem assassinados por conta da cor de sua pele. Nossos filhos podem ser melhores que nós, e isso é responsabilidade nossa.
* em memória a Miguel, George, Marielle, João Pedro, Marcos, Ágatha e tantas outras vidas pretas vítimas desse racismo que mata todos os dias.
16 Comentários
Perfeito Rhanielle! Essa pergunta também não me sai da cabeça: porque a vida de alguém de outra cor vale menos?
É revoltante.
Obrigada pelo comentário, Deborah.! Sim, é revoltante e a gente pode, apesar do sentimento de impotência, mudar isso em casa, com os nossos filhos, para quem sabe termos um futuro melhor. Um abraço.
Olá Rhaniele, parabéns pelo texto!
Como mãe e mulher preta sinto na pele tudo que você escreveu no seu texto. 😔
Eu confesso que me da uma enorme tristeza, ter que explicar para meus filhos que nem todo mundo é igual perante a lei (principalmemte no Brasil), que a cor da pele faz uma enorme diferença no tratamento.
Eu sempre ouvi, que por ser preta e pobre tudo na minha vida seria mais dificil. Estas palavras fazem parte da minha vida até hoje,. Já se passaram muitos anos e pouca coisa mudou, ainda temos que evoluir muito neste quesito. Mas, a esperança é a ultima que morre e como disse Martin Luther King: “I have dream”, eu também tenho o mesmo sonho, que um dia os nossos filhos, netos ou bisnetos, possam viver em mundo sem racismo e sem discriminação.
Tenha uma ótima tarde.
🙏🏾
Luciana, muitíssimo obrigada por vir aqui e dar o seu depoimento. Eu sinto muitíssimo por você e seus familiares terem que lidar com o racismo velado e explícito todos os dias. Eu, como mulher branca, me sinto impotente diante desse racismo enraizado em nossas relações. Mas espero que a geração dos nossos filhos consiga ser melhor, não se calando, se policiando, se questionando e não reproduzindo racismo. Os brancos sempre foram muito condescendentes com o racismo, mesmo aqueles que não eram racistas. Mas como a Angela Davis disse, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista! E é isso. Que o movimento “black lives matter” se espalhe pelo mundo e se traduza em mudanças reais. É o que desejo. Um grande abraço.
Belo texto. Obrigada pela reflexão.
Oi Rhani.
Ótimo texto. Mas a coisa é muito mais cruel. Te falo sem vitimismo ( pois sim, além de lidar com o racismo, ainda preciso salientar que não estou me colocando no lugar de coitada!). Nós estudamos juntas por anos. Mesma sala. Mesma educação. Mesmo ambiente. E hoje, seus filhos estão em uma bolha. A minha filha está na mira do tiro. Tudo porque a cor da pele deles é diferente.
Além de TUDO pelo que já passei devido a cor da minha pele, todos os traumas mal resolvidos e a auto estima inexistente, preciso me equilibrar e nadar contra a maré, pois a minha filha negra de 1 ano precisa de uma mãe ( praticamente uma leoa ) para defendê-la dos preconceitos que ela JÁ sofre e dos que sofrerá. Repito, ela tem 1 ano e essa já é uma pauta relevante na educação dela.
Ela precisará ser a mais inteligente para se destacar. Ela precisará andar sempre com a identidade para provar quem é. Ela não poderá sair de chinelos e cabelo pra cima, para não ser chamada de pivete. E por aí vai. A gente tem que ser forte.
Só que ser forte cansa. Cansa muito!
Wilma, querida, muitíssimo obrigada pelo seu depoimento aqui. Não é vitimismo algum. Nem consigo imaginar o seu cansaço ao ter que ouvir que está nesse lugar de vítima, quando na verdade o que expõe é a realidade, que é ter que viver num mundo extremamente racista! Eu sinto muito por você e por seus familiares por ter que viver nesse mundo de racismo explícito e velado, que impacta as suas vidas desde o nascimento. Eu li aquele livro “Why I’m no longer talking about race wuth white people” e a autora fala exatamente o que narrou: se raça não é uma questão para você, é porque você é branco. Eu, como mulher branca, me sinto muito impotente diante desse racismo estrutural, porque o meu post do facebook ou aqui, não mudará em nada a vida das pessoas, só a minha consciência. Reconheço que a nossa geração, na escola, se calou diante do racismo. A gente não queria falar, queria finjir que não existia. Mas ele tava ali. Espero que a geração dos nossos filhos seja mais combativa, não aceite, não tolere, não reproduza e não finja que ele não existe só porque não os atinge. Uma abraço gigante para você! <3
Muito obrigada, Thais! Um abraço.
Bom lindo texto! Amei
Excelente texto Rhani! Parabéns…
Obrigada, querida! Saudades. Espero estarem bem aí no Brasil. Beijos
Rhani, só lembrando a canção: se todos fossem iguais a você… Mas é isso aí. A branquitude é uma novidade no nosso vocabulário e nas nossas vidas. Gente branca precisa pensar e falar nesses privilégios para entender o outro lado – que na verdade nào devia ser outro. Seu texto é muito lindo. Vamos nessa, é só o q podemos fazer…
bjo grande.
Querida, obrigada pelo comentário. Sim, o sentimento de impotência é enorme, mas vamos construindo tijolinhos para que quem sabe no futuro não haja lados. Beijo grande.
[…] o texto da Rhaniele de Lanteuil aqui no Mães Mundo Afora ( Meus filhos vivem numa bolha em um mundo racista) e a maneira como ela abordou o tema, sob um outro ângulo e uma outra perspectiva, me emocionou. […]
Chegando por aqui agora e que bom começar por esse texto. Não podemos esquecer jamais que não basta não se dizer racista, é urgente que sejamos antirracistas. E isso inclui outra grande urgência: falar sobre o racismo com as crianças. Exatamente como seu texto diz, Rhaniele.
Não achemos pouco o que podemos fazer do alto dos nossos brancos privilégios. Toda e qualquer ação antirracista é necessária.
Beijos e obrigada por este texto.
Obrigada por palavras tão gentis, Mariana. Sim, é um desafio diário e precisamos falar sobre isso. Um abraço.