Desfralde com respeito: como foi aqui em casa
A infância dos nossos filhos é marcada por muitos momentos de ansiedade e dúvidas para nós pais e descobertas e desenvolvimento para eles. Na minha opinião, um dos momentos mais marcantes da transição de bebê para criança é o desfralde.
É um processo complexo, pois envolve a maturação de diversos sistemas na criança: controle esfincteriano, autoregulação, percepção do próprio corpo. Ademais, não bastasse lidar com todos esses processos internos, às vezes, a criança ainda precisa lidar com mais uma dificuldade externa: a ansiedade e angústia dos pais.
O desfralde e suas três dimensões
Para que o desfralde ocorra, é necessário ocorrer o desenvolvimento e maturação da criança em três dimensões diferentes: neurofisiológica, comportamental e emocional.
O processo neurofisiológico consiste em amadurecimento de conexões neurológicas que controlam o assoalho pélvico e o esfíncter, mudanças fisiológicas dos rins e melhoria do sistema interoceptivo – que resulta em melhor consciência corporal. Por ser um processo natural, não pode ser forçado ou acelerado, deve-se respeitar o tempo da criança.
Gosto demais do mantra do desfralde com respeito: “a fralda não é tirada, ela é deixada”. Diversos psicólogos e pediatras que acompanham repetem isso constantemente, e nunca fez tanto sentido para mim.
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O processo comportamental, por outro lado, já é dependente de fatores externos e é influenciado pelas interações com os pais e/ou familiares. É nessa hora que conversar, explicar, demonstrar, deixar a criança nos acompanhar e nos observar indo ao banheiro vai valer a pena: por ser um requisito social, ao ver os outros usando o banheiro, o pequeno se interessará e copiará.
O aspecto emocional do desfralde é mais delicado, pois envolve a mudança da imagem que a criança tem dela mesma bem como sua autoestima. Mesmo que os outros processos estejam “prontos”, se a criança não se percebe “grande o suficiente” por qualquer razão que seja, o desfralde não acontecerá. É uma etapa muito significativa pois é nesse momento que ela perceberá que cresceu e não é mais um bebê. É sempre importante ressaltar também a questão da intimidade: o processo de desfralde só diz respeito à criança e expô-la pode atrapalhar o processo. Se a criança usa fralda ou não… se há escapes acontecendo… nada disso precisa ser compartilhado.
Por envolver diversos processos em diversos níveis, a saída da fralda não deve acontecer juntamente com outros processos, tais como adaptação escolar, chegada de um irmão, mudança, separação, etc. Isso para melhor respeitar os sistemas da criança e não sobrecarregá-la.
A pressão do tempo aqui na França
Aqui na França a escola é obrigatória a partir dos 3 anos de idade – e para ir para a escola a criança já deve ter passado pelo desfralde – era o que todos me falavam . Confesso que isso me deixou muito apreensiva: queria respeitar o tempo do meu filho, mas por outro lado, tínhamos uma data limite… o que fazer?
A creche teve papel fundamental nesse momento de transição e me auxiliou muito: faltando cerca de seis meses para o início das aulas tivemos uma reunião com a equipe da creche (pedagoga, auxiliares, psicóloga e psicomotricista) para a discussão do processo de desfralde, desmistificação dessa obrigatoriedade na escola além de se colocarem à disposição para ajudar os pais. Eles não realizariam o desfralde, apenas dariam suporte quando quiséssemos. Fomos instruídos a conversar e explicar como funciona o corpo e o banheiro, lançar mão de livros sobre o assunto e, principalmente: ter calma! Respeitar a criança era o principal ponto da reunião.
Quanto à desmistificação da obrigatoriedade para a escola, o importante mesmo era a que a criança apresentasse certo controle esfincteriano, mas não necessariamente desfralde total: há banheiros à disposição na escola e pausas programadas ao longo do dia.
O processo com meu filho
Minha ansiedade estava grande para o desfralde, e quis começar cedo: comprei redutor e penico com cerca 10 meses para o início das aulas. Meu filho não demonstrava interesse algum, o penico virou um carregador de brinquedos pela casa. Fiquei um pouco frustrada, mas respirei fundo e pensei que não seria no meu tempo, mas no dele.
Perguntei ao meu filho se ele queria me ver indo ao banheiro, e com a resposta positiva, comecei a deixar ele me observar. Nessa mesma época, conversava muito com ele a respeito, o que resultou em algo fantástico: ele era capaz de explicar tudo sobre o processo fisiológico e o uso do banheiro. Ele descrevia:“o lixo do meu corpinho é o cocô e xixi, a gente vai, senta, depois dá descarga e o cocô e xixi vão embora lá longe”. Eu me enchia de orgulho! Mas isso significava que ele fazia uso do banheiro? Um grande e sonoro não!
Meu filho começou a me avisar quando faria cocô e xixi. A fralda molhada já o incomodava e queria trocar instantaneamente. Conversamos mais uma vez sobre como ele estava crescendo, e que crianças maiores vão ao banheiro como os adultos e que na escola não poderia ir de fralda… que daria apoio a ele, estaria junto para ensiná-lo e apoiá-lo nessa transição. Um dia ele fez xixi no redutor, no outro, cocô… quanta felicidade! Rimos e achamos graça… e depois nunca mais usou de novo!
Novos passos
A frustração começou a se acumular dentro de mim, e eu só pensava: “setembro! Eu preciso resolver isso ate setembro!”. Que empáfia, não? Achando que eu era a protagonista da coisa toda… Perguntei-me o que podia fazer diferente, e comecei a falar que quando ele quisesse poderia trocar a fralda por cuequinha. Escalei meu marido para envolver a criança no universo das cuecas.
Lembrando que meu filho que era o protagonista do processo, decidi envolvê-lo em mais uma etapa. Perguntei a ele se ele queria comprar cuequinhas, escolher as cores. Os olhos dele brilharam e ele abriu um sorriso enorme. Perguntei se ele queria tentar a troca para as cuequinhas quando elas chegassem, ele topou. Perguntei também se tinha algo mais que poderia fazer para ajudá-lo e lhe mostrei um redutor de assento com escada, questionando se ele acharia mais fácil. Ele disse que sim, pois assim poderia ir sozinho – meu filho tenta ao máximo fazer tudo sozinho, não curte se sentir “pequenininho”, como ele diz.
Assim que tudo foi entregue, cuequinhas lavadas, fizemos o teste. No primeiro dia, desastre! Nenhum xixi no banheiro! Sempre o acolhi calmamente, falei que estava tudo bem e limpamos o que precisava. Reforcei que fazia parte, era normal aquilo, mas internamente, o desespero bateu e eu só conseguia pensar: “Estou forçando! Vai gerar trauma!”. Conversamos e, no segundo dia ele insistiu: “mamãe, quero cuequinha de novo!”. E assim foi… e por incrível que possa parecer, nosso processo se finalizou aí. Estamos sem fraldas desde então, com o desfralde noturno acontecendo logo em seguida também, e por insistência dele. Naturalmente, um escape ou outro ainda acontece, mas são exceções.
O desfralde não é algo mecânico, padronizado e que possui uma lista especifica de itens a serem cumpridos para ser alcançado. Ele é sim um processo individualizado, único e que depende apenas da criança. No meu caso, foi através de uma escuta ativa e empática que alcancei o resultado que eu tanto queria: foi apenas ao acolher e envolver meu filho que ele fluiu de forma tão tranquila.
2 Comentários
Meu Deus!!! estava lendo esse post e pensando “finalmente alguém que me intende!!” Tb moro na França, mudamos pra ca do Br ha 6 meses e minha filha q tinha começado a dar sinais para o desfralde regrediu!! agora todos que encontro, quando falo q em Setembro ela vai pra escola me perguntam “ela ja fez o desfralde?” “tem que estar desfraldada, se não a escola não aceita!” ainda ha os comentarios com aquele ton de “nossa, fraldas, ainda? meu filho largou com 2 meses” >/ estou tentando ao maximo não pressiona-la, mas estou sem muito apoio, pois com o Covid não conseguimos creche, enfim….
Estou na esperança de que ela conseguira passar por esse processo à tempo. #oremos
Obrigada pelo post!
Oi Chris!
Essa cobrança e pressão não é nada fácil mesmo né? Mas confie em você e na sua filha, esse processo não precisa e não deve ser tão rígido como muitos falam.
Sinta-se acolhida! Saiba que você não está sozinha…
Obrigada pelo seu relato.
Um grande abraço!