Quando olhamos para a Espanha, pensamos em um país tradicional, católico. De fato, a religião ainda é bastante forte por aqui, inclusive nas escolas. Todos os colégios, mesmo os públicos, oferecem a disciplina religião para todas as idades, de forma não obrigatória. Além disso, o evento social infantil mais celebrado por aqui é a primeira comunhão. Porém, na minha percepção, o olhar pela perspectiva de gênero já está mais sedimentado aqui do que no Brasil. Dois exemplos práticos:
– a composição do atual governo espanhol é de 11 homens (incluído o Presidente) e 12 mulheres.
– a consciência da necessidade de mudanças, externadas em manifestações massivas no dia 8 de março, conhecidas como “Huelga de 8 de marzo”, que exigem igualdade de gênero, alterações legislativas etc.
Isso não quer dizer que não existam problemas, pois há violência de gênero (45 feminicídios em 2020), diferença salarial (as mulheres recebem em média 12% a menos por hora trabalhada) e dificuldade de conciliação entre o trabalho e o cuidado dos filhos. Sobre esse tema, há possibilidade de solicitação de redução da jornada para homens e mulheres. Porém, as solicitações são feitas primordialmente por mulheres, num percentual acima de 90%.
O que é gênero?
“Não se nasce mulher: torna-se”. Simone de Beauvoir
Tradicionalmente, a diferença entre mulher e homem foi baseada em critérios biológicos. Porém, a partir da segunda metade do século XX, a sociologia começou a estudar os impactos sociais na construção da nossa identidade, concluindo que homens e mulheres exercem papéis de acordo com a cultura e a sociedade em que vivem. Ou seja, enquanto o critério biológico divide as pessoas em homem ou mulher, o conceito de gênero se baseia numa construção social. Sobre que papéis e expectativas se impõem a mulheres e homens.
Assim, denominamos gênero o conjunto de características sociais, culturais, políticas, psicológicas, jurídicas, econômicas, designado a uma pessoa em função ao sexo que pertence. Dentro desse contexto, temos os estereótipos de gênero, que são imagens prefixadas que homogeneízam as pessoas e se atribui a elas características ou comportamentos esperados, de acordo com seu gênero.
Aqui fica fácil de exemplificar:
– meninas são mais doces e comportadas
– meninos são mais travessos
– meninos são melhores em ciências exatas
– meninas gostam de cuidar de bonecas
– meninos gostam de brincar de carrinho
– meninas já nascem com o instinto maternal
Isso de fato é “biológico” ou é como ainda ensinamos – e permitimos – que as crianças se comportem?
Sobre esse tema, sugiro a leitura do texto incrível e cheio de sensibilidade da Carol Medeiros: O desafio de criar meninas hoje.
Brinquedo de menina x Brinquedo de menino x Brinquedo de criança
A família, a escola e os meios de comunicação têm grande ingerência na formação da identidade da criança, inclusive nas questões de gênero, de qual é o seu “papel”, seja menino ou menina.
Cor de menina. Cor de menino. Brinquedo de menina. Brinquedo de menina. Brincadeira de menino. Brincadeira de menino. Desenho de menina. Desenho de menino.
Quem nunca ouviu essas frases? E como é difícil não as repetir para os nossos filhos e filhas. Mas, devemos sair do “automático” se quisermos uma sociedade mais igualitária para as futuras gerações.
Utilizando como exemplo a escola do meu filho, na hora da brincadeira as crianças escolhem em pequenos grupos mistos o “rincão” onde vão brincar. Não há divisão por gênero, e meninos e meninas brincam de casinha e de carrinho indistintamente.
Linguagem inclusiva
Atualmente muito se discute sobre linguagem inclusiva.
Vamos pensar em alguns exemplos:
– A pessoa tem 2 filhas e 1 filho. Como se refere a ele e a elas? Meus filhos? Mesmo sendo apenas 1 menino?
– Comunicado da universidade: “TodOs Os alunos…..”. “TodOs Os professorEs”.
Se paramos para pensar, muito pouco se evoluiu nesse aspecto. Algumas pessoas podem questionar sua efetividade, mas a linguagem “masculina” exclui a mulher. Não podemos atribuir ao “masculino genérico” a função de gênero neutro.
Mais uma vez aqui se mostra necessário “sair do automático”. Analisar o quão inclusivo está o nosso discurso. O empoderamento caminha junto à linguagem. Nossas meninas precisam se sentir incluídas e respeitadas.
Acredito que a Espanha já tenha dado alguns passos nessa direção. Veja como o governo trata a questão: Guías para el uso no sexista del lenguaje.
Eu passei a prestar mais atenção nisso. Notei que a comunicação que vem da escola respeita esse preceito de linguagem não sexista, seja por parte da professora ou da diretora. Para exemplificar:
“Estimadas familias, se acerca carnaval y desde el centro realizaremos actividades relacionadas con el mismo. Durante la semana que viene, los alumnos y alumnas podrán ir con diferentes consignas”.
Coeducação
Outro tema relacionado à perspectiva de gênero é a coeducação. O governo espanhol trata da questão neste guia, com a seguinte definição:
“Por coeducación se entiende la propuesta pedagógica actual para dar respuesta a la reivindica-ción de la igualdad realizada por la teoría feminista, que propone una reformulación del modelo de transmisión del conocimiento y de las ideas desde una perspectiva de género en los espacios de socialización destinados a la formación y el aprendizaje.”
“Por coeducação se entende a proposta pedagógica atual que responde à reivindicação de igualdade feita pela teoria feminista, que propõe uma reformulação do modelo de transmissão de conhecimentos e ideias a partir de uma perspectiva de gênero nos espaços de socialização destinados à formação e à aprendizagem.” (tradução livre)
Ou seja, a coeducação é um método educativo que parte do princípio de igualdade de gênero e da não discriminação por razão de sexo. Coeducar significa não estabelecer relações de domínio entre os sexos. Educar em igualdade a partir da diferença.
A escola constitui um dos espaços de socialização mais importantes e de maior influência para o desenvolvimento de uma pessoa. É fundamental que esses espaços se nutram dos ideais de igualdade e se convertam em ambientes livres de discriminação, de desigualdade e de violência. Para tanto, é necessário que toda a comunidade educativa (incluindo aqui as famílias) assuma esses princípios, se responsabilize e se comprometa com eles.
Para exemplificar, a escola coeducativa possui os seguintes objetivos:
– Fomentar o desenvolvimento das capacidades dos alunos e alunas de forma igualitária.
– Incentivar uma atitude crítica, que questione os discursos hegemônicos do patriarcado.
– Revisar o conteúdo dos livros e material de classe. Este ponto é muito relevante. Já paramos para pensar como as mulheres são representadas nos livros? Elas aparecem nos livros? Quantas autoras são lidas? Há fotos e discursos que reforçam estereótipos? – Apontar as contribuições das mulheres na história e na atualidade.
– Favorecer a participação equitativa em aula e nos espaços comuns das escolas (exemplo: quadras e pátio).
– Utilizar linguagem inclusiva e respeitosa; evitar o “masculino genérico”.
– Normalizar a diversidade.
Saiba mais sobre coeducação aqui.
Criar a próxima geração em igualdade, sem machismo e dentro de uma perspectiva de gênero cabe a nós. Se queremos que nossos filhos e filhas vivam num mundo mais justo, é uma rota necessária a trilhar.