Feminicídio na Espanha
É incontestável que ainda hoje, 2020, as mulheres continuem sofrendo toda sorte de violência e discriminação. Os números da violência podem variar muito de um país para outro, mas, em todos os continentes se mata mulheres pelos motivos mais torpes.
Há números alarmantes, como no México, onde milhares de mulheres foram às ruas protestar no último 8 de março. Com relação à América Latina os números na Europa são menores. Porém, #NiUnaMenos, #NiUnaMás reforça o quanto é necessário colocar um fim à violência de gênero.
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Alguns dados sobre a violência contra a mulher no Brasil
A Constituição Federal de 1988, elaborada após o fim da ditadura militar, traz a dignidade humana e a igualdade entre homens e mulheres como norte para a legislação infraconstitucional. De fato, algumas leis posteriores trouxeram grandes avanços, mas, a legislação de per si não é capaz de mudar uma realidade de desigualdade, discriminação e violência. É necessário que seus preceitos sejam de fatos materializados.
Um exemplo é a Lei Maria da Penha, ou Lei contra a Violência Doméstica, de 2006, fortemente inspirada na Lei espanhola 1/2004. Apesar de ser um marco, de trazer luz a um crime muitas vezes “invisível”, muita coisa ainda hoje não saiu do papel. Ou, saiu de forma deficitária, como ocorre com as medidas protetivas de urgência.
Apesar de concedida a ordem pelo juiz, o controle por parte da polícia é pífio. Por exemplo, no caso do agressor ficar proibido de se aproximar da vítima, na prática ela ainda continua exposta: “…o réu descumpriu a medida, foi até a residência da vítima, onde ocorreu uma discussão. Logo em seguida, o acusado pegou uma faca e perseguiu a vítima em fuga para a casa da vizinha, alcançando a ex-mulher no interior da residência, quando desferiu diversos golpes de faca contra ela”. Isso não é a exceção. Isso é o dia a dia. Veja notícia completa em TJDF.
Feminicídio é crime hediondo
No Brasil, a figura do feminicídio foi incorporada ao Código Penal em 2005, e também incluída no rol dos crimes hediondos. Trata-se de uma forma qualificada do crime de homicídio, com pena de 12 a 30 anos de reclusão. É definido como matar mulher por razões da condição de sexo feminino.
Vale destacar que mesmo uma pena tão alta parece não assustar ou prevenir o crime, pois em 2019 houve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio, culminando na morte de 1.314 mulheres. Ou seja, uma a cada sete horas em média.
A violência contra a mulher na Espanha
Na Espanha, apesar de não haver previsão legal expressa, define-se feminicídio como o assassinato de uma mulher, cometido por um homem, motivado por machismo ou misoginia.
Existem alguns marcos na história espanhola que precisam ser contextualizados.
Entre os anos de 1939 (fim da guerra civil) e 1975, a Espanha esteve sob o jugo da ditadura de Franco. E, como em qualquer ditadura, a violação aos direitos das mulheres era forte e presente. Em 1978, com o advento da Constituição, ares democráticos tomam conta do país e paulatinamente direitos passam a ser conquistados.
A violência doméstica na Espanha foi por muito tempo mantida à margem do ordenamento jurídico. Porém, após o feminicídio de Ana Orantes Ruiz, a população pede um basta a esta situação.
Uma história dentre tantas histórias semelhantes
Ao longo de 40 anos, Ana foi vítima de toda sorte de violência por parte do marido. A primeira vez que apanhou eram recém-casados, tinha 19 anos. Ela não entendeu o que tinha acontecido, mas ainda assim se sentiu culpada e pediu perdão. Daí em diante a violência só aumentou. Ana tentou por diversas vezes sair dessa situação, seja por meio da polícia ou do judiciário. Mas, sem proteção legal, apenas no ano de 1996 conseguiu se divorciar. E, ainda assim, compartilhando a casa com o ex-marido, conforme orientação do juiz. Em 1997, Ana aceitou contar a sua história na TV, tentando ajudar a outras mulheres. Porém, por este motivo foi assassinada. Após bater em Ana, seu ex a amarrou em uma cadeira, jogou gasolina e ateou fogo.
A partir daí, mulheres foram às ruas e congressistas pediram alterações legislativas. Porém, ainda tardaram a chegar. Apenas no governo Zapatero, em 2004, foi aprovada a Lei de medidas de proteção integral contra a violência de gênero, Lei Orgânica 1/2004.
Como a Lei repercute na Espanha
Ainda hoje esta lei não é unanimidade no país. O partido de ultradireita, Vox, que é a terceira força política do país, pede a sua revogação. Partido que também não esteve presente nas manifestações de 8 de março de 2020, ao contrário de todos os demais partidos.
A despeito das críticas, os avanços da Lei são inquestionáveis, e, por sua qualidade, já foi considerada a melhor lei contra a violência de gênero.
Vejamos alguns pontos:
– alteração dos princípios e valores do sistema educativo, com a inclusão de aulas sobre igualdade e violência de gênero
– medidas nos âmbitos da publicidade e meios de comunicação
– direitos laborais, previdenciários e assistenciais às vítimas
– treinamento de pessoal no âmbito da justiça e da saúde
Destaco esses pontos porque acredito que a violência contra a mulher não se resolva apenas com o aumento de penas. É necessária uma nova consciência. O empoderamento feminino desde a infância. A criação de um ambiente hostil ao machismo. Um ambiente onde o presidente da república não possa fazer piadas machistas e misóginas e ainda assim ser aplaudido por homens e mulheres.
Os números do feminicídio na Espanha
Desde 2003, ano que teve início a contagem, até dezembro de 2019, foram assassinadas pelo companheiro ou ex-companheiro a cifra de 1.033 mulheres. Em 2019, foram 55 casos e 2020 já soma 20 mortes. A décima quinta vítima faleceu em 8/3/2020, Dia Internacional da Mulher, em decorrência de um tiro na cabeça disparado pelo marido.
Porém, o que se deve destacar é que são contabilizados apenas os crimes cometidos pelo companheiro ou ex-companheiro contra a mulher. Não entram no cômputo total os seus familiares, que também são vítimas nesse contexto, ou, ainda, o assassinato de mulheres por questões de gênero, mas sem envolvimento sentimental.
Estes e outros pontos, como a criação de um tipo específico para o feminicídio, estão na pauta feminista de 2020, que pede alterações na Lei Orgânica 1/2004.
O que os números mostram
O governo espanhol disponibiliza os dados do homicídio de mulheres sob diversos enfoques, seja por idade, por região do país, ou da relação existente entre vítima e assassino. Assim como no Brasil, há casos de quebra da medida judicial de afastamento por parte do agressor, mas os números são baixos: 4, de um total de 55 assassinatos em 2019, e também 4 quebras de um total de 51 homicídios em 2018.
Outro ponto que merece destaque é o relacionado às denúncias. As mulheres procuram ajuda? Os dados mostram que em alguns casos a vítima ou algum familiar já havia denunciado o agressor. Mas, não atinge um terço dos casos que culminaram em morte: 11 denúncias, de 55 casos em 2019, e 15, num total de 51 casos em 2018.
A luta pelos direitos das mulheres continua
Por que as mulheres não denunciam mais? Vergonha, filhos, dependência econômica, revitimização pelo Estado (delegacias, hospitais, tribunais). Há vários fatores. Voltaremos a tratar deles, pois os direitos das mulheres devem ser defendidos sempre, não apenas no dia 8 de março.