Desde o século XVIII, os britânicos estão entre os maiores consumidores de chá no mundo, atrás apenas dos turcos e irlandeses. Ironicamente, costumo falar com outras mães expatriadas na Inglaterra que minhas amigas no Brasil pensam que estou aqui “tomando chá com a rainha”. Minha intenção com a piada é dizer que minha vida aqui não é moleza. Mas não farei tempestade em xícara de chá. A verdade é que aprendi a apreciar a tradição inglesa de uma nice cuppa (uma boa xícara de chá, em gíria britânica) em diversos momentos do dia.
Já consigo encontrar prazer na pausa para o chá, que restaura e revigora, e oferece momentos de reflexão durante o dia. Mais do que isso, já tenho necessidade desta pausa em meu dia. Assumimos a tradição do chá. “Minha barriga ficou quentinha”, avisa minha filha mais nova que já se acostumou com a bebida depois do jantar nos dias frios.
Chá com leite, limão, açúcar ou puro
A antropóloga Kate Fox, que escreveu o livro Watching the English (Observando os Ingleses – As Regras Escondidas do Comportamento Inglês) notou que há diversas mensagens transmitidas nesta tradição dos britânico quando preparam uma xícara de chá.
O English breakfast tea, ou chá preto, é bebido em grande parte pela classe trabalhadora. Os chás feitos com ervas sem cafeína são geralmente apreciados pelos mais alternativos. Já adicionar açúcar ao chá pode ser considerado por alguns como um indicador de uma classe social mais baixa. E, de fato, adicionar leite ao chá preto é extremamente comum por aqui. Assim é preparado o Builder’s tea, o chá preto e forte dos trabalhadores, que adicionam leite e deixam o saquinho dentro da caneca mesmo. Ao contrário de outros países que têm o intervalo para o café, na Inglaterra em escritórios, fábricas e outros locais de trabalho tem-se o vital tea break (intervalo do chá).
Fox observa ainda que o chá tem o papel de preencher um espaço social. “Em qualquer momento que os ingleses possam se sentir constrangidos ou desconfortáveis em uma situação social (ou seja, quase o tempo todo), eles preparam chá.”, ela escreve.
O Livro do Chá
O Livro do Chá foi escrito em 1906 pelo japonês Okakura Kakuzo e reproduzo aqui o trecho inicial da obra: “O chá começou como remédio e se transformou em bebida. Na China, no século VIII, entrou no domínio da poesia como um entretenimento refinado. O século XV viu o Japão enobrecê-lo a uma religião estética, o Chaísmo. O Chaísmo é um culto fundado na adoração do belo que há nos fatos sórdidos da existência diária. Ele incute pureza e harmonia, o mistério da beneficência mútua, o romantismo da ordem social. É, essencialmente, uma adoração ao Imperfeito, assim como uma tentativa suave de realizar algo possível nesta coisa impossível a que chamamos de vida.”
Chá com livros
A bebida está presente em diversas obras da literatura e em frases célebres de escritores britânicos.
C.S Lewis diz que “não há nenhuma xícara que possa ser grande demais ou livro que possa ser longo demais.”
e Henry James coloca que:
há poucas horas na vida mais agradáveis do que aquelas dedicadas à cerimônia conhecida como chá da tarde.”
Em Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, temos o seguinte diálogo no melhor estilo nonsense do escritor:
“Tome mais um pouco de chá,” a Lebre de Março falou à Alice, muito honestamente.
“Ainda não tomei nada,” Alice respondeu ofendida, “então não posso tomar mais.”
“Você quer dizer que não pode tomar menos,”, disse o Chapeleiro: “é muito fácil tomar mais do que nada.”
“Ninguém pediu sua opinião,”, falou Alice.”
David Walliams é um conhecido comediante, escritor de livros infantis e júri de programa de TV no Reino Unido. Em seu livro Mr Stink, ele diz:
“Na Grã Bretanha, uma xícara de chá é a resposta para todos os problemas.”
Caiu da bicicleta? Tome uma boa xícara de chá.
Sua casa foi destruída por um meteoro? Uma boa xícara de chá e um biscoito.
Sua família inteira foi comida por um Tiranossauro Rex que viajou no espaço/tempo através de um portal? Uma boa xícara de chá e uma fatia de bolo. Possivelmente alguma opção de salgado também seria bem-vinda aqui, por exemplo um scotch egg ou um folheado de salsicha.”
Em sintonia com O Livro do Chá japonês, Agatha Christie aprecia a beleza do cotidiano e celebra: “Chá! Abençoado seja o comum chá da tarde de todo dia!”. Já a escritora Virginia Woolf, em um de seus mergulhos psicológicos, escreve em seu diário: “mesmo um chá da tarde pode significar apreensão, ruptura.”
O vocabulário do chá
O chá da tarde tradicional costuma ser acompanhado de sanduíche de pepinos, folheados e outras iguarias. Pode ser servido em um restaurante ou hotel.
Em algumas regiões do Reino Unido, como é o caso de onde eu moro, tea significa jantar. Logo, você pode estar sentado em um restaurante, comendo um prato de carne e o garçom poderá te perguntar: tudo bem com o seu chá? Para complicar um pouco mais, dinner significa almoço. Então, minhas filhas todos os dias na escola escolhem entre duas ou três opções de school dinners, por exemplo.
Kettle é a chaleira elétrica que está presente na grande maioria das casas no Reino Unido. A expressão put the kettle on significa que você terá visitantes e irá começar a preparar o chá para recebê-los.
Scones são acompanhamentos comuns para o chá e são uma espécie de biscoito (difícil dizer se a massa é doce ou salgada!) que geralmente contém passas, e podem ser acompanhados de manteiga ou geleia.
Os rituais contemporâneos do chá
O chá pode nos dar conforto em um mundo de incertezas. E pela quantidade de incertezas que estamos vivendo este ano, penso que o consumo da bebida deve ter aumentado mundo afora.
O chá nos proporciona equilíbrio, controle e segurança, em um mundo que está sempre mudando. A tradição de tomar chá como um ritual nos dá a chance de ter previsibilidade e estrutura. O chá é um lembrete de que nossas emoções podem precisar de um tempo para se assentar.
Também pode ser uma maneira simples e eficaz de nos conectarmos a nós mesmos e aos outros. Desde pequena gostava de tomar chá mate (gelado, na praia, com biscoito de preferência, ou, nos intervalos na escola). Vivendo na Inglaterra, ampliei a apreciação da bebida, a tradição do chá inglês agora faz parte do meu dia a dia.

Imagem cedida por Ana Paula Bessa
Um paraíso para amantes do Chá
Para quem pretende visitar Londres, sempre recomendo uma visita à loja da Twinings, no número 216 da Rua Strand.
Ali já se sentaram para uma xícara de chá a escritora Jane Austen e o pintor William Hogarth e hoje em dia é possível fazer uma degustação dos mais diversos sabores. Há um pequeno museu do chá ao lado da loja que conta a história dessa tradicional marca de chás. Como disse o grupo de comediantes ingleses, Monty Python: “faça chá, não faça guerra” ou, segundo um antigo provérbio chinês: “a água é a mãe do chá, a chaleira, seu pai e o fogo seu mentor.”
*Os trechos de livros e provérbios foram por mim livremente traduzidos.
*As ilustrações deste texto foram cedidas por uma colega de muitos tea breaks quando trabalhávamos juntas no Brasil.
2 Comentários
Que delícia o seu texto, Ana! Aconchegante (cozy) como o chá. Eu sou do chá (não tomo café) e tomo uns 3 por dia. Adorei o humor do seu texto e as curiosidades sobre o chá que eu não conhecia. E com certeza vou visitar a loja da Twinings!
Vamos tomar um chá juntas um dia desses, quando for possíve, Ana Almeida!