Alice, a Holanda e a água: sobrevivência e adaptação no país abaixo do nível do mar
Você sabia que a Holanda fica abaixo do nível do mar? Não centímetros, não. São METROS! Em alguns lugares, é possível ver a superfície da água seis metros acima das ruas! E não é uma cidadezinha ou outra. Cerca de 60% do território nacional está no nível do mar ou abaixo dele. Mais de 8 milhões de pessoas, quase metade da população de uma das nações com a maior densidade demográfica do mundo. Países Baixos, lembra? Pois é.
Daí a necessidade dos tão famosos moinhos, canais, diques, e também do alargamento dos rios, criação de comitês regionais da Água, planos de enchente, da alta tecnologia na engenharia de portos, de imposto específico para manter tudo isso e da obrigatoriedade de Diploma Nacional de Natação para TODAS as crianças. Na Holanda, cumprir o Padrão Nacional de Segurança da Natação é literalmente uma questão de sobrevivência! Então, a partir dos 4 anos, toda criança holandesa vai para natação a fim de tirar os diplomas A, B e C. A relação dos holandeses com a água é hilária e maravilhosa (e o fundamento histórico disso você saberá melhor no final deste texto).
A Alice só foi para aula de natação em abril, quando já era capaz de entender os comandos dos professores e se expressar em holandês. Quando chegou para fazer o teste de nível, eu tinha certeza de que iria pular vários, afinal ela fazia natação no Rio desde bebê, já pulava de cabeça e nadava bem. Pois, de cinco níveis de turma para o tal Diploma A, ela foi para o segundo. Tentei controlar o misto de revolta e decepção. “Esses holandeses são malucos”, pensei, “querendo dizer pra quem vem de um país com mais de 8 mil quilômetros de costa que não sabemos nadar?!?”. Eu demorei um pouco para entender…
Quer saber mais sobre a vida nos Países Baixos? Leia a série Holanda para Menores – Parte 1 , parte 2 e parte 3.
Sabe aquelas aulas que a gente fez quando pequena, ou aquela natação que frequentamos com o nosso bebê ainda com meses de idade? Esquece! Aqui na Holanda, a criança precisa ser capaz de sobreviver dentro da água. Não é uma questão de dar belas braçadas de crawl, dominar as quatro modalidades de nado ou competir em clubes por medalhas. O aluno cai de roupa e sapato na água. Fria. E precisa aprender a não afundar. A boiar de peito, de costas e virar. A mergulhar em águas profundas e a sair da água. A subir num objeto flutuante e descansar nele. A olhar e se orientar debaixo d’água e procurar objetos. A economizar energia. A controlar a respiração e o medo. A se sentir confortável e se divertir dentro d’água. E a nadar bem as quatro modalidades por longas distâncias.
Rito de passagem
Os holandeses não têm uma simples aula de natação. É um treinamento de sobrevivência em águas abertas, mas sem ondas como rios e canais.
Tirar os diplomas de A, B e C é um rito de passagem aqui. E, como todo rito, tem pressão e expectativa, tem festa e família reunida, assistindo ansiosa e aplaudindo orgulhosa. As provas acontecem aos sábados (pelo menos na piscina onde a minha filha faz aula) e a criança só participa a convite, quando o professor acha que ela está pronta.

De braçada para o diploma de sobrevivência (arquivo pessoal)
Não é uma competição. O desafio não é vencer o adversário, chegar em primeiro e subir no pódio. É dominar a água e superar a si mesmo. Os diplomas são documentos (há inclusive campanhas contra a sua falsificação). Somente com o diploma A, por exemplo, a criança pode participar das olimpíadas da escola e frequentar as piscinas públicas na parte funda e de saltos. Alice passou o verão holandês brincando a uma profundidade de 90 centímetros, máximo permitido sem o diploma. Logo ela, menina do Rio, que cresceu com piscina no prédio e passeio de barco no mar…
Fiquei nervosa na prova do diploma A. Aquilo era muito mais difícil do que eu imaginava. E olha que sou eu quem a acompanho toda semana às aulas… Se fosse eu dentro da piscina, com a minha atual preparação física, acho que não conseguiria. Dava peninha cada vez que as crianças saíam da água, com lábios roxos e caras exaustas, mal conseguindo andar até o banco para esperar o próximo comando da prova, que dura ao todo 45 minutos.
Mas a Alice é esse ser que tem me ensinado, dia após dia, força, resiliência, superação e o poder da capacidade de adaptação. Ela, que chegou receosa na primeira aula, com medo de nada entender, se divertia a cada semana. Ela ama água e piscina. E em cinco meses tirou o seu Diploma A.
Para o B foi um pulo. Abusada e confiante, disse que a prova, que ela fez no último dia 8 de dezembro, foi fácil. E pediu para continuar nas aulas para tirar o C, que adiciona um casaco à equação criança + água + calça jeans + sapato + blusa de manga + metros e metros de piscina. E lá vamos nós para mais essa jornada.
2018 foi o ano da Alice. Muitos desafios e dificuldades, ainda mais conquistas, vitórias e evolução. Algumas vezes me questiono o lugar de espectadora que assumi nos últimos 18 meses. Nem sempre é fácil se encaixar num papel para o qual você não foi exatamente talhada. Mas, na maioria do tempo, tudo o que faço é agradecer essa oportunidade de, através da Alice, refletir sobre a minha atitude em relação à vida, a ela, às mudanças, ao futuro, ao presente. E poder mergulhar de cabeça nesse momento com ela.
Ao mesmo tempo amiga e adversária
Toda essa preocupação dos holandeses com a água, obviamente, não é infundada. Os primeiros habitantes desse lugar duplicaram o tamanho do país drenando a água de quilômetros e quilômetros de terras, literalmente expulsando o mar. Abriram milhares de canais, que hoje dão charme e atraem para o país milhões de turistas que se encantam com as casinhas tortas graças à instabilidade do terreno pantanoso. Tudo tem um preço. No último século, os Países Baixos afundaram meio metro.
Para não desaparecer, a Holanda tornou-se referência mundial na engenharia, controle e gestão da água. A luta com o furioso Mar do Norte é diária. Ela deu origem aos 32 quilômetros do Afsluitdijk*, o dique gigante de 7,5 metros de altura com duas eclusas ao norte do país. E também ao DeltaWerken, ao sul de Rotterdam, o maior sistema de controle de inundações e a mais longa represa do mundo – um conjunto de barreiras e 62 comportas de 40 metros cada ao longo de três quilômetros, que demorou 50 anos para ficar pronta, hoje é uma das sete maravilhas da engenharia moderna e que nós fomos conhecer nas férias de verão 🙂 . E ainda ao maior robô do planeta, uma barreira móvel construída na boca do Rio Reno para controlar a entrada de água durante tempestades e evitar que o porto e a cidade de Rotterdam fiquem submersos.
Nos últimos 100 anos os holandeses enfrentaram tempestades e enchentes históricas que deixaram Amsterdam debaixo d’água, milhares de animais e pessoas mortas e desabrigadas, grandes parcelas de terra fértil inutilizadas e algumas cidades submersas para sempre. Para evitar que essas tragédias se repitam, aqui paga-se imposto dos diques – 102,54 euros por pessoa para que o governo faça manutenção constante e integral, e uma eventual ampliação do sistema, por conta dos efeitos das mudanças climáticas.
Parece piada, mas é o pragmatismo holandês. Eles não podem lutar contra a água, então aprenderam e ensinam a conviver, se beneficiar e sobreviver a ela.
*Em 2014, a TV Globo fez um Globo Repórter sobre o Afsluitdijk que você pode assistir aqui .
Se quiser saber mais sobre a luta dos holandeses com a água, que já dura 2 mil anos, assista a este incrível documentário.
4 Comentários
Incrível tudo isso Carol!
Realmente é e será uma luta positiva em suas vidas!
Positiva, pois o novo nos assusta ,mas nos faz mais fortes!
Alice ,no seu despontar para a vida nos dá o exemplo do que somos capazes.
Que este ano que desponta, traga a vcs a coragem que impulsiona o viver , anexada à todas as formas de alegrias que esta nova pátria possa oferecer.
Felicidades! e parabéns !
👏👏👏 Feliz Ano Novo!!!!🎆🌠🦋🥂🎉🌠🎆
Dominar as águas, é incrível mesmo. Muito fora dos nossos padrões tupiniquins. Viva nossa corajosa Alice e suas experiências maravilhosas.
Parabéns pelo texto Carol.
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