Ele não parece autista
Estava na minha correria louca de terapias. Busca daqui, leva para ali! Entrei no elevador com o meu filho e a minha filha. Eles tinham 4 e 3 anos, respectivamente. Enquanto apalpava os meus bolsos a fim de procurar a chave do carro, vi uma senhora com uma bolsa de couro coberta de tachinhas prateadas na minha frente. Logo pensei que meu filho adoraria tocá-la. Fiquei monitorando-o para evitar qualquer situação constrangedora.
O elevador parou num andar. Todo mundo saiu, menos a dona da bolsa. Nem preciso dizer que as tachinhas da bolsa reluziram. O meu filho foi com tudo em direção àquelas tachinhas. A moça se assustou. Eu falei “Ele tem autismo, vive procurando botõezinhos e detalhes para sentir a textura. Desculpe-nos pela situação.”.
Ela me respondeu “Nossa, nem parece! Ele é lindo! Na novela tem uma moça com autismo e ela foi curada pelo médico…”.
Numa outra situação, era a primeira vez que eu encontrava a esposa de um colega de trabalho do meu marido. Enquanto conversávamos, eu segurava o meu filho pela mãozinha a fim de que não corresse em direção à rua. Ele tinha uns 3 anos nessa época. Ele me puxava para todos os lados. Era impossível concentrar-me na conversa.
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A minha conhecida deveria estar incomodada e perguntou-me por que eu não o soltava. Eu respondi “Tenho medo de que ele vá para a rua, pois tem autismo.”. Ela simplesmente me respondeu “Você deveria ter me falado antes. Te ajudo a olhá-lo!”
A partir daquele dia, comecei a falar para todo mundo que o meu menino tem Transtorno do Espectro Autista (TEA). Mas nem todo mundo tem a mesma reação. E tudo bem. Contudo, algumas reações machucam, constrangem e são inadequadas.
Acima, contei apenas duas histórias dentre muitas para exemplificar. Casos semelhantes ocorrem com outras mães, conforme escutei diversas vezes. Aparecem pessoas que querem ajudar, outras que acham que a sua criança tem “problema” ou que a sua criança é um “anjo”. Há ainda aquelas que o veem como um “doente” ou mesmo um mal educado, cujos os pais não souberam criar. Há aqueles que até contestam o diagnóstico, sem terem formação na área. Todo mundo dá um pitaco!
Uma caixinha de desabafo
Tudo começou com uma caixinha que abri no stories do meu Instagram. Nunca pensei que tantas mães de crianças com TEA iriam responder. A pergunta foi simples, mas que trouxe vários sentimentos à tona, reflexões, conversas com amigas profissionais e outras mães por mensagens de texto. Trouxe inclusive forças para escrever esse texto.
Perguntei no Instagram “Como mãe de criança com Transtorno do Espectro Autista, qual a frase que você mais escuta?”. A caixinha de pergunta foi colocada no stories num sábado, me levando a uma noite muito mal dormida e a um domingo cheio de reflexões.
O que fazer com aquelas respostas. Guardá-las para mim não teria sentido. O meu objetivo é trazer o leitor a uma reflexão, na tentativa de promover relações mais empáticas na sociedade em que vivemos.
Respostas mais escutadas
- “Nem parece que tem autismo,…ele é tão inteligente!”
A resposta “nem parece que tem autismo” foi a mais escutada pelas mães, seguida de “ele é tão inteligente”.
Percebo que, quando falamos sobre autismo, as pessoas tendem a imaginar o autismo “clássico” descrito por Leo Kanner em 1943, ou alguém como o personagem Raymond, interpretado por Dustin Hoffman no filme Rain Main, em 1988. O universo do espectro autista é enorme, sendo que cada indivíduo com autismo é único.
Segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5ª edição (DSM-5), o TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento, no qual há déficit na comunicação social, dificuldades na interação social, e presença de comportamentos restritos e repetitivos. Quer conhecer um pouco mais a respeito do TEA? Clique aqui.
Na verdade, ao contrário do que muitos pensam, sabemos atualmente que 70% das pessoas com TEA possuem alguma comorbidade. A deficiência intelectual pode ser uma das várias comorbidades, tal qual a epilepsia, o transtorno de hiperatividade e déficit de atenção (TDAH), transtorno obsessivo compulsivo (TOC), distúrbios do sono, etc.
- “Ele tem autismo, mas é lindo.”
“Ele tem autismo, mas é lindo” também foi relatado pelas mães que responderam à enquete. Adoro quando os meus filhos são elogiados. Eu sou uma mãe coruja. No entanto, tudo depende do momento e da forma que é feito o elogio.
Acredito que muita gente gosta de elogios, mas, nesse caso, a congratulação vem em seguida do informe da palavra “autismo”. Na verdade, o elogio se contrapõe ao “autismo”, como uma forma de compensação. Elogie no momento adequado, não após receber a informação de que a criança tem o diagnóstico. Tem mães que não ligam, mas outras ficam chateadas.
Algumas mães relataram ter recebido a sugestão por pessoas próximas de levar a criança à igreja ou de buscar bênçãos. Paradoxalmente, outras relataram ouvir que foram escolhidas por Deus para terem filhos com autismo.
Pesquisas científicas atuais identificaram 102 genes que estão ligados ao Transtorno do Espectro Autista. Leia mais aqui. Em 2020, o Center for Disease Control and Prevention estimou que 1 em cada 54 crianças tem TEA, independentemente da condição socioeconômica, raça ou etnia.
- “Você tem certeza que ele tem autismo?”
A pergunta “Você tem certeza que ele tem autismo?” também apareceu na caixinha. Para receber o diagnóstico de TEA é necessário consultas com pediatras, neurologistas e vários outros profissionais, além de exames, questionários, anamneses e muito chá de cadeira em salas de espera. Junto a tudo isso, há ainda o sentimento de ansiedade e muitas dúvidas.
Não duvide quando alguém te contar que o (a) filho(a) tem o diagnóstico. O caminho percorrido até o diagnóstico é árduo, cansativo e oneroso. Se você não for especialista, não o conteste.
- “Mãezinha” ou “Mãe azul”
Ser chamada de “mãezinha” ou “mãe azul” também apareceu na caixinha de respostas. Trata-se de forma de romantizar a maternidade ou de singularizar a mãe da pessoa com TEA. Contudo, essa mãe tem nome e sobrenome, como as demais. Por aqui, nos Estados Unidos, o sobrenome (por exemplo: Senhora Botelho) é utilizado em qualquer contexto.
Exposição pode gerar empatia e apoio?
A organização norte-americana Autism Speaks tem uma carta modelo para os pais informarem aos vizinhos sobre o autismo para caso de que ocorra algo com a criança diagnosticada, como entrar em uma casa errada, sair de casa sozinho, atravessar a rua, entre outros.
A National Autism Association tem um kit de segurança com adesivo para o carro e uma faixa para o cinto de segurança, informando que no veículo tem uma pessoa com autismo.
No Reino Unido, cordões de girassóis são utilizados em aeroportos como forma de identificar as deficiências não visíveis para que os funcionários prestem apoio caso necessário. Camisetas com estampas referentes ao autismo também são comuns. Elas são utilizadas principalmente em passeios e ambientes com muitas pessoas.
Além disso, algumas famílias fazem cartinhas de apresentação para informar professores e colegas de turma sobre o diagnóstico da criança, suas competências, suas características pessoais e preferências.
Avisar sobre o diagnóstico objetiva evitar qualquer julgamento ou constrangimento à pessoa com TEA, ao mesmo tempo trata-se de um pedido de empatia e apoio. Desta forma, preparam as pessoas e o ambiente para maior inclusão, gerando a empatia e consequentemente o apoio necessário ao autista. Omitir a deficiência pode na verdade criar barreiras adicionais à inclusão.
Na dúvida, pergunte como pode auxiliar a pessoa com TEA ou outra deficiência, ao invés de apresentar suposições e frases aparentemente “consoladoras”. Nós precisamos de apoio e não de consolo.
10 Comentários
Texto lindo! Parabéns!
Oi, Cristiane! Que bom você gostou! Foi escrito com muito carinho. Abraços, Rachel
Excelente, na dúvida pergunte! Não faça suposições e julgamentos. Seja parte da rede de apoio de uma família.
Querida Ana Tereza, obrigada! Rede de apoio é tudo!!! Abraços, Rachel
Gostei muito do texto… Sou mãe de um filho, com TEA, ele está com quatro anos, foi e está sendo pra mim uma experiência muito grande, vivo na Itália, hoje procuro sempre a falar com as pessoas das dificuldades que meu filho tem, mais foi um processo muito difícil no início, mas eu entendi que é mais fácil dizer as pessoas. Obrigado
Oi, Raquel! Obrigada pelo feedback. Fica muito mais fácil mesmo. Sonho que um dia não precisaremos dar explicações. Sairemos e eles poderão dar seus gritinhos ou fazer o flapping sem olhares 🙂 Um abraço em vocês!
Parabéns!! Texto muito bacana!
Sonja, obrigada pelo feedback! o texto foi escrito com muito carinho. Abraços, Rachel
Parabéns pelo texto, Rachel! É aprendizado duplo: com os relatos das suas experiências e das informações científicas que nos deu. Saudades, amiga.
Oi, Erika! Receber o seu feedback é um presente! Obrigada!!! Saudades de você e das crianças!