Quando eu comecei a pensar neste texto, eu estava planejando em escrever uma carta para o ano 2020, mas eu acho que ele já recebeu demais, entre reclamações, dúvidas e muitos (merecidos) protestos. Porque, afinal, que ano! Onde fomos parar? O que você fez nesses meses todos? O que te marcou? O que eu vou levar na memória? O que minha filha lembrará de 2020, o ano da pandemia?
Então, eu comecei a pensar que se fosse para escrever, o que eu escreveria? Seria mais uma a reclamar? Dizer que esse ano não prestou ou o quê? Pensei em todos os momentos que vivi e que me levaram muitas vezes à exaustão e à saudade de forma ainda mais exacerbada. Não pelo tempo que fiquei longe de quem está fisicamente distante, no Brasil, mas sim porque mesmo quem está perto não podia sempre ser visto e tocado, e também porque pela primeira vez não sei quando poderei ir abraçar minha família, tornando tudo mais difícil.
Mas também não acho que seria o caso de romantizar e dizer que esse foi um ano de desacelerar e olhar para as coisas que realmente importam, ainda que eu tenha vivido isso também. Vivi o bom e o ruim, porque a verdade é que esse ano é único e vai ficar marcado pelas coisas positivas e negativas que proporcionou.
E o que a minha filha lembrará deste ano?
Então me peguei olhando para a minha filha e me perguntando: o que ela vai se lembrar de tudo isso? Eu tenho apenas flashes de memória do que vivi aos 2-3 anos, mas não vivi uma pandemia. O que será que ela vai lembrar, quando no futuro alguém perguntar: “Nossa, você lembra da pandemia do Covid-19?” Ela provavelmente vai dizer: “eu tinha 2-3 anos, não lembro direito”. Talvez fique marcado pelas pessoas de máscara, pelo uso quase obsessivo do álcool em gel. Talvez usar máscara seja o normal e ela possa dizer aos seus filhos e netos: “Quando eu nasci as pessoas não usavam máscaras por aí, isso começou no ano de 2020 com a pandemia!”
Como será que ela vai se lembrar das professoras da pré-escola, já que até agora nunca viu como é o sorriso delas? Vai se lembrar que elas usam sempre um avental cirúrgico e máscara, e que todos os dias a temperatura é medida antes de entrar e na hora de ir embora, ao invés de um abraço ou um sorriso? Aliás, não é estranho que em muitos lugares onde a gente entra tem alguém que aponta uma coisa para sua cabeça? Não sei se é loucura de alguém que cresceu em um país que lidera o ranking de mortes por arma de fogo no mundo, mas ter algo apontado para a minha cabeça ou observar tal ato, especialmente à distância, me incomoda. Eu sei que é o melhor jeito de medir a temperatura à distância e até me acostumei, mas mantenho meu certo desconforto para mim.
Leia também: O que a quarentena me ensinou
Mas vou parar de devanear e voltar para a minha filha. Há um tempo circulou um texto bem bonito pela internet dizendo que as crianças vão lembrar deste período como aquele em que tiveram os pais mais próximos, das brincadeiras, enfim, para os pais aproveitarem e criarem as melhores memórias afetivas para os pequenos. Ele me tocou, assim como a inúmeras pessoas. Mas acho que quem o escreveu não imaginou que os meses iriam passar e as condições não iriam mudar tanto. É possível realmente ser fortaleza o tempo todo para os filhos durante um período tão duro? Acho que não.
E para as famílias que perderam entes queridos e não puderam se despedir? E quem perdeu emprego e a preocupação era tanta para pagar as contas no fim do mês, será que dava para ser fortaleza e construir lindas memórias? É, acho que minha filha vai levar desta história toda uma grande lição de privilégios, pois nenhuma dessas foi nossa preocupação. Além disso, temos um pequeno jardim, e eu não precisava dividir meu tempo entre home office e cuidar dela. E apesar do quanto a Itália foi atingida na primeira onda e agora de novo na segunda, tivemos um verão com pequenas reuniões de família e amigos, muito ar livre e férias. E ela pôde retornar à escola em setembro. Então, se ela vai poder talvez carregar lindas memórias de uma páscoa com ovos escondidos no jardim, de pinturas a dedo, de plantar feijão e tomate na sacada, tivemos privilégio.

Acervo pessoal: Páscoa no jardim de casa e, tempos de isolamento social
Mas, ao mesmo tempo, ela também vai ter a memória de que nem sempre eu estava disponível para ela, porque me faltava tempo para mim. Que mãe não se sobrecarregou no cuidado com os filhos em algum momento este ano e desejou nem que por umas horas uma certa distância de quem estava tão perto, e proximidade de quem estava longe? Ela vai se lembrar ainda do longo período que passou sem encontrar os avós e os primos, que estão tão perto. E da incerteza de quando vamos ver a família no Brasil de novo. Ela talvez tenha entendido pela primeira vez o significado da palavra saudade. O que me consola é saber que a percepção de tempo e de distância que ela tem nessa idade não é como a nossa. Ela ainda vive muito mais o presente, enquanto nós insistimos em viver planejando um futuro e remoendo o que não poderá ser.
Será que ela vai se lembrar do quanto me faz sorrir quando ela diz: “Amanhã, quando a pandemia acabar…”?
4 Comentários
[…] Natal e Ano Novo na pandemia: do que você precisa? As tradições do Natal na Irlanda O que minha filha lembrará de 2020, o ano da… Ciclicidade e Autoconhecimento: uma conexão com o […]
[…] Leia também: O que minha filha lembrará de 2020, o ano da Pandemia […]
[…] Leia mais: O que minha filha lembrará de 2020, o ano da pandemia? […]
[…] Leia também O que minha filha lembrará de 2020, o ano da pandemia ? […]