O novo normal em Xangai em época de COVID19
Foram dois meses longe de nossa casa em Xangai. Estávamos presos no paraíso das Filipinas, cercados de praias paradisíacas, mas tensos por não sabermos quando e como iríamos para casa. Finalmente, no dia 17 de março, pousamos em Xangai e fomos direto para casa, onde ficamos duas semanas em “quarentena voluntária”.
Chegar no nosso prédio naquela noite foi quase como entrar na twilight zone (zona crepuscular) todos ao nosso redor usavam máscaras, os botões do elevador estavam cobertos por plástico adesivo, e ao lado havia um container improvisado com palitos de dentes para apertar os botões do elevador.
Por duas semanas não saímos e não recebemos ninguém em casa. Nem os entregadores podiam (e ainda não podem) entrar no prédio. Compras são deixadas na portaria e cada entrega é devidamente registrada. Naquela semana, entrei em contato com amigos que já haviam voltado à “vida normal”. Eu só tinha uma pergunta: como está a vida aí fora?
Verde, amarelo ou vermelho?
Ouvimos dizer que o governo controlava cada pessoa que havia chegado mas, na verdade, ele nem deveria se preocupar: nossos próprios vizinhos de porta pareciam estar controlando os nossos passos para terem a certeza de que nós não estávamos saindo de casa. Fizemos a quarentena não por medo do governo ou dos vizinhos, mas porque fazia sentido, pois era a coisa certa a fazer.
Depois de duas semanas, chegou a hora de ir para a rua e ver com os próprios olhos o novo normal. Na bolsa, álcool gel. No rosto, máscaras para toda a família. Outra novidade foi a introdução dos QR code (códigos QR) de saúde. Esse código, gerado por aplicativos como Alipay (carteira eletrônica da Alibaba) é capaz de juntar informações de uma determinada pessoa e, baseado nos resultados, gerar um código, que pode ser verde, amarelo ou vermelho. Verde significa que a pessoa é segura e tem poucas chances de ter a doença. Amarelo significa que há um risco maior e vermelho, o pior de todos, indica que a pessoa é um grande risco aos outros.
O programa do código de saúde é gratuito, mas não há transparência sobre que dados ele obtém, nem como é o processo de designação das cores. O que sabemos é que, independentemente disso representar ou não uma invasão de privacidade, era impossível entrar em qualquer lugar em Xangai sem esse código. Além disso, todos os estabelecimentos, como escolas, condomínios, academias e restaurantes exigiam o registro na chegada (online ou em papel) e a medição de temperatura corporal.
A reabertura da cidade
Na academia onde trabalho, eu mesma fazia esse processo em cada pessoa que entrava. Toda vez que eu pensava na loucura em que vivíamos, eu me lembrava que pelo menos em Xangai a vida estava voltando normal. Comparado com outros lugares pelo mundo, mesmo com as máscaras, termômetros e códigos, nós éramos privilegiados: pegamos somente duas semanas de isolamento social e logo depois já estávamos frequentando restaurantes, festas e vendo os amigos.
Um dos lugares que mais demoraram para reabrir foram as escolas. Xangai foi uma das últimas cidades da China a fazer isso, mesmo com um número baixíssimo de infectados. Enquanto alunos do terceiro ano em diante voltaram às aulas em abril, alunos mais novos, como a Clara, só retornaram às aulas em junho. De março até a última semana de maio não tínhamos a menor ideia de quando as creches reabririam. O governo local de Xangai proibiu aulas online para alunos mais novos (com o que eu concordo plenamente) e os parquinhos estavam todos fechados, assim como tudo o que oferecesse atividades para as crianças. Nos restavam ideias de atividades para fazer em casa, enviadas pela escola aos pais, pela Internet. Ajudava um pouco, mas a falta de rotina, estímulo e contato com outras crianças fez falta tanto para a Clara quanto para nós.
O “novo normal” na volta às aulas
Finalmente na última semana de maio ficamos sabendo que as aulas da Clara retornariam. Para abrir, a escola teve que passar por uma vistoria do governo, além de enviar a pais e professores os novos protocolos de segurança. Algumas das medidas foram: horários separados para levar e buscar cada turma; horários estipulados para cada turma brincar no parquinho; protocolo para caso de febre durante as aulas; proibição da entrada de pais e responsáveis dentro da escola.
Alguns dias depois de recebermos o e-mail, chegou a hora de levar a Clara para o primeiro dia de aula depois de quase seis meses sem creche. Chegamos na escola no horário designado, com a Clara usando máscara (mandatório para a chegada, devendo ser retirada antes de entrar em sala). Logo na entrada da escola havia marcações no chão onde os pais deveriam esperar quando levassem e buscassem os filhos, garantindo assim o distanciamento social.
Logo depois de passar pelo portão de entrada, as crianças tiram as máscaras e lavam as mãos nas pias externas que foram instaladas por exigência do governo. Depois disso, nos despedimos e logo na entrada da creche uma enfermeira examina cada criança rapidamente: mede-se a temperatura, examina-se a garganta. Brinquedos de fora são proibidos, pois tudo na creche é desinfetado e não sai da escola.
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Além de tudo isso, todas as manhãs eu preciso registrar a Clara em uma plataforma online do distrito onde moramos e onde fica a creche dela. No aplicativo é obrigatório marcar se ela tem febre e se saiu de Xangai. Quando eu esqueço, a escola telefona e pede que eu o faça com urgência. Caso a Clara tenha febre em casa, ou viaje para fora de Xangai, é necessário que ela fique em casa por duas semanas ou faça o teste do COVID.
Em caso de febre na escola, o protocolo é: isolar a criança em área designada com a enfermeira da escola, os pais são notificados e recebem o “cartão da febre”, que permite que a família possa ser atendida rapidamente em hospital para fazer o teste do COVID. Na turma da Clara já foram dois casos de colegas com febre. Ambos foram testados e deram negativo. Porém, enquanto o resultado do teste não sai, as outras crianças da turma têm seus horários de chegada e saída ainda mais afastados dos outros e precisam usar máscaras o dia todo!
Adaptados e relaxados, mas ainda angustiados
Estamos caminhando em direção ao quarto mês desde o nosso retorno. Por mais estranho que tenha sido no início usar máscaras nas ruas e ter a nossa temperatura medida em todo lugar, hoje em dia Xangai parece estar desconectada do resto do mundo, no bom sentido. Número de casos super baixos, regras relaxando, restaurantes, bares e academias cheios novamente e escolas, museus e comércio abertos.
Festas e celebrações já são acontecimentos normais e a vida parece estar se reestabelecendo. Talvez a única lembrança de que as coisas ainda não voltaram totalmente ao normal é o fato de as fronteiras da China estarem fechadas. Isso quer dizer que para nós, estrangeiros, caso saiamos do país, não sabemos quando poderemos voltar. Uma coisa é não poder viajar a lazer. Outra é saber que caso a sua família no Brasil (ou outro país) precise de você, será preciso escolher entre ficar ou sair sem data para voltar. Isso quer dizer abandonar tudo: trabalho, escola, casa, de um dia para outro. Não sabemos sequer quando poderemos ver nossos familiares e nossos países de origem. Saber que hoje em dia o nosso mundo não é sem fronteiras pode ser angustiante.
Por aqui decidimos nos concentrar nas coisas boas: estamos em casa, com saúde, em uma cidade onde a situação está sob controle. Espero agora que tudo melhore no resto do mundo e quando tudo voltar ao normal, a primeira coisa que eu quero é poder me encontrar com a minha família (Brasil e Inglaterra) e dar o abraço mais longo de toda a minha vida!