O medo do coronavírus e a discriminação contra chineses.
Me lembro como se fosse ontem a minha primeira aula de Antropologia na faculdade. Fiquei encantada! A possibilidade de estudar hábitos, costumes e crenças de outros povos sempre me fascinou. E esse campo de estudos me deu novas ferramentas pra refletir melhor sobre diversidade cultural. A minha vontade de entender mais sobre o modo de vida de diferentes povos foi sendo alimentada pelas novas oportunidades de viagens ao exterior que tive. A experiência se ampliou quando morei na Argentina durante dois anos e meio, e chegou ao ápice com a minha mudança para Nova Iorque.
Em Nova Iorque, me sinto morando na “capital do mundo”, porque convivo diariamente com pessoas de distintos países. Se os Estados Unidos são vistos como um melting pot, lugar onde diferentes culturas se misturam, certamente Nova Iorque é uma das cidades que mais representa isso.
Como as diferenças culturais fazem parte da realidade diária da vida das pessoas que vivem na cidade, o ar que se respira aqui é de maneira geral de tolerância e respeito. No dia a dia, escutamos os mais distintos idiomas, vemos pessoas usando trajes típicos de diferentes países, os desfiles comemorativos das variadas datas nacionais são celebrados com frequência, provamos a culinária de distintas regiões de mundo e etc. A atmosfera da Big Apple (como é conhecida a cidade) é totalmente multicultural.
O Que Mudou em Nova Iorque Com o Coronavírus?
Em Nova Iorque temos uma grande comunidade chinesa. É o lugar com a maior população chinesa fora da Ásia. Há vários bairros chineses (chinatowns) espalhados pela cidade. Com a comemoração no Ano Novo Chinês no fim do mês de janeiro, muitas famílias que residem aqui viajaram pra China.
A partir da divulgação das primeiras notícias sobre a explosão do coronavírus em Wuhan, o mundo todo começou a ficar preocupado com a expansão do vírus. Aos poucos, começaram a aparecer na mídia alguns casos de discriminação contra chineses ao redor do mundo.
Na primeira semana de fevereiro, enviei uma mensagem para uma colega chinesa que não via fazia quase dois meses, propondo um encontro para colocarmos a conversa em dia. Ela, muito responsável, me respondeu dizendo que tinha acabado de voltar da China e por isso ia ficar em quarentena durante um tempo. Só entrou em contato comigo novamente depois de um mês.
Discriminação contra chineses em Nova Iorque
Eu nunca tinha notado nenhuma postura preconceituosa em relação aos asiáticos em Nova Iorque após a divulgação da disseminação do Covid-19 ao redor do mundo. Até que em 5 de fevereiro, a imprensa noticiou uma agressão a uma mulher asiática (que na ocasião estava de máscara) no metrô de Nova Iorque. O agressor, um homem, a chamou de “doente” e a agrediu fisicamente. O vídeo do ato de violência foi divulgado e o governo da cidade classificou o ato como como hate crime (crime de ódio) e clamou por informações sobre o agressor. Para saber mais, clique aqui.
A partir daí, comecei a refletir que por ser branca, alguns comportamentos e olhares preconceituosos contra asiáticos possam ter passado despercebidos por mim. Puxei papo com a Yan, minha colega chinesa, sobre a questão da agressão contra a mulher asiática. Para minha surpresa, ela disse que muitos chineses já estavam evitando ao máximo sair de casa, pois estavam sentindo que algumas pessoas os olhavam de uma maneira diferente, ofensiva, como se não estivessem satisfeitos com a presença deles. Ela disse que ficou muito surpresa e feliz por eu ter me mantido próxima a ela.
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Fui pra casa com o coração partido e concluí que eu só era capaz de perceber um ato discriminatório contra asiáticos se ele fosse realmente explícito. Minha cabeça estava treinada para notar a discriminação contra negros (e talvez latinos), mas eu nunca havia refletido muito sobre a discriminação contra os asiáticos. Fiquei triste ao saber que até em Nova Iorque, local onde a convivência entre diferentes nacionalidades e culturas é rotina, aquilo estava acontecendo. O número de atos discriminatórios relatados até agora é pequeno, mas de todo modo, serviu para gerar desconforto e trazer medo para a comunidade chinesa, que já estava sofrendo com a situação da doença na China. Clique aqui para saber mais sobre o posicionamento do prefeito em relação aos casos.
O papel do governo federal na discriminação contra a China
As relações entre Estados Unidos e China já vinham complicadas faz alguns anos. Durante o governo do presidente Trump, os dois países se envolveram em uma grande disputa comercial. O presidente norte-americano acusava a China de práticas comerciais desleais e roubo de propriedade intelectual. Na China, havia a percepção de que os Estados Unidos queriam conter a sua ascensão como potência econômica global. A situação parecia estar melhorando no início do de 2020, antes do aparecimento do coronavírus.
Conforme o vírus foi se espalhando pelo mundo, o presidente Trump começou a se referir a ele como o “vírus chinês”. O governo chinês criticou a postura, assim como vários líderes dentro do Estados Unidos (como o prefeito e o governador de Nova Iorque). Como contrapartida, o governo chinês disseminou um boato de que um soldado americano é que teria levado o vírus até Wuhan em outubro de 2019.
A Organização Mundial de Saúde já se pronunciou contra a vinculação do vírus a qualquer país ou grupo social devido ao risco de estigmatização. Espero que o governo federal dos Estados Unidos atue de forma mais responsável daqui pra frente e altere essa maneira de tratar o vírus, pois acredito que a postura atual incite algumas pessoas mal informadas a cometerem atos de discriminação contra chineses.
Responsabilidade compartilhada contra o Coronavírus
Nesse momento em que estamos vivendo a pandemia, está muito claro que estamos todos interconectados e que a saída desse problema só pode ser coletiva, global. Não adianta um indivíduo sozinho seguir as recomendações para evitar o contágio, se o seu vizinho não fizer o mesmo. O mesmo acontece em relação aos países. A responsabilidade é coletiva, compartilhada. Não é hora de buscarmos culpados, e sim, de tomarmos medidas efetivas para tentar frear essa situação tentando minimizar a perda de vidas e os prejuízos econômicos. Não vejo a hora desse pesadelo passar e eu poder voltar a andar pelas ruas da Big Apple, cidade cosmopolita que já me ensinou tanta coisa.
3 Comentários
Querida Claudia, obrigada pelo seu texto. Infelizmente, isso aqui na outra costa americana também acontece. Dói ver o discurso de alguns líderes …
Raquel, só agora vi o seu comentário. Acredita?
Dói mesmo. A postura discriminatória de alguns deles de certo modo estimula alguns atos violentos.Triste demais!
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