Ainda me lembro como se fosse ontem: era dia 22 de janeiro, véspera do Ano Novo Chinês, e esperávamos para embarcar no nosso voo para Cebu (Filipinas), saindo do aeroporto de Pudong (Xangai), onde moramos. Já havia rumores de um novo vírus (coronavírus), mas nada que nos assustasse. Afinal, tínhamos experiência com outras epidemias na China e tínhamos muitos amigos que estavam na China na época da terrível SARS.
Chegamos nas Filipinas e logo na saída do avião todos os passageiros já tiveram as suas temperaturas medidas, algo que a China fez na época do H1N1. De Cebu tivemos uma longa jornada até o nosso primeiro destino, ainda planejado (Malapascua), um verdadeiro paraíso pouco explorado.
Chegando no nosso hotel, celebrávamos o que na época considerávamos ser o maior estresse da viagem até então: no voo, Clara havia passado mal e chegamos a ficar com medo de que ela tivesse um virose e ficasse desidratada. Porém, poucas horas depois ela se recuperou sozinha e quando chegamos em Malapascua ficamos aliviados, com a certeza de que o pior havia passado.
A evacuação
Mero engano. Em poucos dias, os números de casos de coronavírus na China aumentaram drasticamente. Ainda assim, planejávamos retornar a Xangai no dia quatro de fevereiro. Poucos dias depois da nossa chegada, Thomas, meu marido, teve uma conversa por telefone com a equipe de gestão de risco de sua empresa. Em seguida, ele meu deu a notícia de que havíamos sido “evacuados”. Sim, essa foi a palavra utilizada. Evacuados. Aos poucos ficamos sabendo que a maioria das empresas internacionais recomendou que funcionários expatriados que estivessem fora da China (e muitos estavam por causa do feriado) permanecessem fora até a situação melhorar.
Oficialmente evacuados e com apoio da empresa, seguimos os nossos planos de viagem e poucos dias depois fomos ao nosso segundo destino planejado, Bantayan, outra ilha perto de Cebu.
Bantayan foi um lugar maravilhoso, mas não relaxamos pois tínhamos que decidir o que fazer. Na época, e com o coronavírus restrito à China, eram várias as nossas opções: meu marido precisava ficar no mesmo fuso horário da China e Perth, na Austrália, o que o limitava à Ásia. Eu e Clara poderíamos ir para a Inglaterra, Dinamarca ou Brasil, onde temos família e acesso a bons serviços de saúde. Mas eu não queria viajar para tão longe sozinha com ela nessa situação. Tinha medo de que ficássemos presas em algum aeroporto por termos vindo da China ou que nossa família ficasse separada por muito tempo, algo que de fato aconteceu com muitas famílias que conhecemos. Depois de ponderarmos muito com o pouco de informação que tínhamos, decidimos ficarmos todos juntos, nas Filipinas, que ainda era um lugar seguro na época.
A rotina em meio à falta de rotina
O dia previsto para o nosso retorno foi se aproximando. Já havíamos decidido ficar, mas mesmo que não tivéssemos, o governo filipino teria decidido por nós, pois todos os vôos de e para a China haviam sido cancelados por causa do coronavírus, incluindo o nosso, é claro. Apesar de Bantayan ser um lugar lindo, nós precisávamos ir para um lugar com mais infraestrutura, já que poderia ser uma estadia longa na qual o Thomas faria homeoffice e eu ficaria com a Clara quase que em tempo integral.
Fomos para Boracay, uma ilha paradisíaca que nós dois já conhecíamos e sabíamos que tinha boa infraestrutura. Lá nos hospedamos no Henann Palm Beach, um hotel quatro estrelas bem de frente para a famosa White Beach . Ficamos lá durante duas semanas. Além do hotel ser muito bom, os funcionários eram muito atenciosos. Apesar disso, meu marido precisava trabalhar, o que era muito difícil dividindo um quarto de hotel com uma criança de três anos. Por isso, mudamos de hotel mais duas vezes, em busca de quartos com mais de um ambiente.
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A essa altura não tínhamos ideia de quando voltaríamos para a China. Portanto, ficou muito claro que precisávamos estabelecer uma rotina, em especial para a Clara. Com o Thomas trabalhando e eu sem rotina alguma, nós decidimos que se fosse possível, teríamos uma babá algumas horas por dia. Não achamos nenhuma agência de babás na ilha e quando já estávamos quase desistindo, conhecemos Rutchel, funcionária do primeiro hotel onde nos hospedamos e uma das pessoas mais doces e dedicadas que já conheci na vida. Rutchel acabou virando a babá da Clara que, por sua vez, ganhou algo parecido a uma rotina: de manhã, café da manhã comigo e com Thomas; depois, praia com a mamãe, seguido de almoço e tardes com a Rutchel. Uma vez por semana a creche da Clara também organizava (e ainda organiza) chamadas de vídeo com o professor. E assim foi, por um mês.
A viagem vira fuga
Na segunda semana de março, ficou claro que a situação nas Filipinas havia se deteriorado rapidamente: agora com chineses e corenaos proibidos de irem para lá, a ilha se tornava cada vez mais deserta, com muitos hotéis e lojas fechando as portas. Rumores de que a ilha iria fechar de vez por causa do coronavírus começaram a circular e, pior, um possível lockdown das principais cidades do país também estava próximo de acontecer. Era hora de ir embora. Ainda seguindo recomendações de diferentes pessoas, devido ao coronavírus decidimos ficar longe da China e optamos por ir para Penang, na Malásia. Fizemos essa escolha pois na época o país parecia estável e um dos colegas do Thomas já estava lá com a esposa. Imaginamos que seria bom estar com uma outra família “conhecida”.
Alugamos um Airbnb no mesmo prédio, com planos de ficarmos por lá algumas semanas. Entretanto, essa viagem foi cheia de surpresas o tempo todo. Na segunda noite em Penang, às onze da noite, estávamos todos na cama quando meu marido me mostrou seu celular. Eu li apenas a chamada da notícia: “Malásia prestes a entrar em lockdown”. Na hora eu levantei da cama e falei: “vamos para casa”.
O retorno
Meu medo era ficar presa em um país que nós pouco conhecemos, no qual não temos rede de apoio (a outra família havia decidido voltar para Shenzhen, na China, por causa do coronavírus horas antes) e não somos residentes. Pelo menos a China nos é familiar… é a nossa casa!
Enquanto eu fazia as malas às pressas, Thomas tentava comprar passagens para a China. A essa altura, não havia mais voos diretos, mas conseguimos um voo via Bangkok, na Tailândia, às oito horas da manhã seguinte. Seis horas após decidirmos voltar, fomos para o aeroporto. O medo agora era que um dos nossos voos fosse cancelado, o que havia acontecido com vários. Algumas horas depois chegamos a Bangkok, onde tivemos uma espera de sete horas. Mais um tempo rezando para o voo não ser cancelado! Embarcamos. Mais uma respirada de alívio.
Chegamos!
Finalmente chegamos na China onde mais um sufoco nos aguardava. Não sabíamos o que nos esperava na chegada. Seríamos colocados em quarentena em casa? Em facilidade do governo? Poderíamos ir para casa? Nenhuma resposta. Ficamos parados na pista em Xangai por mais de duas horas. Os comissários chamavam alguns passageiros de cada vez. Finalmente chamaram nossos nomes. Na saída do avião, uma pessoa em roupas de laboratório perguntava em que países havíamos estado e recebia nossos formulários de saúde (preenchidos durante o voo). De lá ficamos no finger do avião com um pequeno grupo de passageiros.
Depois de mais ou menos 30 minutos no finger, fomos liberados. Como viemos de países que não eram ainda zonas de risco do coronavírus, recebemos um adesivo verde nos nossos passaportes e pudemos ir para nossa casa, cumprir a quarentena lá. Famílias vindas da Europa, por outro lado, foram levadas para locais determinados pelo governo para quarentena e testes.
Gratidão
Assim que passamos pela imigração, me veio uma sensação de alívio tão grande que até escorreu uma lágrima do meu olho. Às dez da noite e cansados física e emocionalmente, chegamos ao nosso prédio. Feng, a nossa ajudante, havia ido à nossa casa horas antes para deixar um jantar. No dia seguinte, começamos a nossa quarentena em casa e dois dias depois a Malásia entrou na lista de países de risco da China. Uma semana depois, por causa do coronavírus a China fechou totalmente as suas fronteiras por tempo indeterminado. Demos sorte. Muita sorte. E por mais que tenham sido tempos muito difíceis, serei eternamente grata por termos conseguido voltar para casa em segurança e com saúde.
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