E minha avó nos ensinou: viver e não ter vergonha de ser feliz !
O meu 2020 iniciou-se cheio de esperanças, projetos e promessas de mudanças na minha vida. Já contei aqui que completei meu marco de 40 anos em dezembro de 2019 e havia preparado uma série de coisas na minha cabeça para este ano! Comecei o ano com ânimo total. Mas, como a vida é cheia de surpresas, como já dizia o conhecido samba-enredo da União da Ilha do Governador, campeão do carnaval carioca de 1978:
O que será o amanhã?
Responda quem puder
O que irá me acontecer?
O meu destino será como Deus quiser
E tudo mudou da noite para o dia. Aqui na Itália em meados de fevereiro começamos a conviver com essa epidemia que em pouco tempo assombrou todo o mundo. Quando na vida pensamos em viver tamanha tristeza?
O mundo foi colocado em confinamento, isolamento social. Passamos a acompanhar diariamente estatísticas de doentes, recuperados e mortos. As mídias sociais focavam apenas num único assunto assustador. E passamos a ter como única e exclusiva meta neste ano sairmos vivos e sãos de toda essa loucura.
Momentos de conexões e desconexões
Em meio a toda essa maluquice, optei por deixar de fazer parte de vários grupos virtuais. Os ânimos andavam exaltados, pessoas intolerantes e, muitas vezes, mesmo sem ter a intenção, o respeito ao pensamento alheio caía por terra sem nem percebermos. Aquela história que muitos publicaram em suas redes sociais: “não estamos no mesmo barco. A tempestade pode até ser a mesma, mas realmente estamos em barcos diferentes.”
Resolvi então focar ao máximo em ter qualidade no meu tempo com minha família em casa. Desliguei-me totalmente de muitas coisas. Porém, continuei conectada com poucos, dando mais ênfase à parte da família que estava longe, no Brasil, pois a saudade andava apertada. Muita vontade de ver e abraçar a todos.
Passamos por um dia das mães com um turbilhão de sentimentos, teve choro, emoção, saudade, homenagem e principalmente muito carinho. E logo na segunda-feira seguinte foi aniversário da nossa matriarca: 92 anos da minha avó paterna, a tão querida e alegre vó Vera!
A festa
Vó Vera sempre foi festeira, animada, amorosa com todos, fazendo sempre questão de reunir a família nessas datas especiais. Mas, desde o início da pandemia, havia entrado em quarentena e já se pronunciado dizendo que apesar de amar a todos, não queria visitas: 92 anos, mas cheia de atitude! Nossa comandante!
Assim, tivemos a ideia de comemorar o seu aniversário com toda a família numa festa online, que era a moda do momento nesses últimos tempos de quarentena. As crianças acharam o máximo cantar parabéns para a bisa pela internet. Disseram que ela era muito moderna.
A festa foi linda! Ela, como sempre, impecável. Elegantérrima, maquiada, cabelos feitos e um sorriso no rosto de nos deixar contagiados com sua alegria. Fez questão de dizer que quem não estava é porque chegaria atrasado por conta do trabalho. Para tudo tinha uma explicação. Defensora árdua dos quatro filhos, nove netos e sete bisnetos. Ai de quem falasse qualquer coisa a respeito deles que não a agradasse! Tomava a nossa defesa como um general para vencer uma guerra!
Sempre muito independente e lúcida, nos disse que apesar de muito velhinha, estava muito feliz naquele dia.

Aniversário online da vó Vera – acervo pessoal
O golpe
Porém, após a sua festa virtual, sentiu-se muito cansada e foi dormir. E essa dormida passou a ser longa, os dias foram passando, até que inevitavelmente, uma dezena de dias após a sua festa, ela foi internada.
Para a nossa surpresa, mesmo com todo o cuidado adotado, ela havia contraído o tão temido vírus lá no Brasil. E após alguns poucos dias de hospital ela nos deixou, deixando um rombo enorme em nossos corações. Partiu inesperadamente, sem o direito a uma despedida ou última homenagem. Ficou aquela sensação horrorosa de que faltou um pedaço. Como disse meu filho de oito anos para me consolar ao me ver chorar: “Mãe, todos nós um dia iremos para céu, pena só que não pudemos dar um último abraço nela.”
As lembranças e seu legado
E como não podia ser diferente, minutos após a sua partida, mexendo na sua pasta de documentos para tomar as providencias necessárias, encontraram uma carta de próprio punho verdadeiramente emocionante que ela deixou para nos confortar.
Filhos, netos, bisnetos, familiares e amigos,
Hoje, dia de minha partida, quero que vivam sem tristeza este momento. Escolhi ser cremada e desejo que levem minhas cinzas para junto das flores. Não que eu me considere uma delas, desejo apenas fazer parte delas. Vivi bem a minha vida, agradeço a Deus por tudo. Quero que minha família procure ajudar sempre os necessitados e que se amem uns aos outros cada vez mais. Não chorem, lembrem sempre que fui uma “viúva alegre” com muita fé em Deus e muito amor por todos. Sigo para eternidade com a consciência do dever cumprido.”
Era uma pessoa muito alegre e muito preparada espiritualmente. Ficou viúva muito jovem, mas criou filhos, netos e bisnetos de caráter, unidos e bons de coração. Nos ensinou a sermos feliz, a não termos vergonha de viver a vida honestamente com muita alegria. Foi um exemplo do feminino, com muita delicadeza e elegância, deixando um extraordinário legado a todos nós.
Era do tipo que guardava nossos segredos, podíamos desabafar, nos dava conselhos. Sabia de todas as coisas. E sempre, sempre dava um jeito de nos acolher em seu colo e nos confortar. O verdadeiro colo de vó.
Leia também: Como foi falar com as crianças que a vovó morreu
Minha avó sempre foi uma mulher muito à frente do seu tempo. Fez a Universidade Aberta da Terceira Idade na UERJ. Era sempre a noiva das quadrilhas. Lembro de uma quadrilha que ela se vestiu de “Sem Terra e Sem Dono”. Na festa à fantasia da sua hidroterapia ela causava vestida de gatinha, com direito a body preto, meia arrastão, orelhinhas e rabinho. Estava sempre nos lançamentos de teatros e cinemas rodeada de amigos. Foi realmente uma pessoa especial e muito querida por todos! Fazia o seu devido sucesso!
E como bem disse minha tia: “Foi muito duro para nós todos que ficamos, uma verdadeira paulada! Mas ela não podia sair dessa vida de outro jeito. Não podia morrer de uma doença qualquer. Tinha que ser de uma forma impactante, causando muito, deixando muita saudade e ficando para história, “os inumeráveis”. Os bisnetos que vivenciaram isso, um dia vão contar para os seus filhos que tiveram uma bisa que morreu por causa de um vírus muito ruim. Comecei a entender, ela tem que fazer parte da história.”
O seu recado para nós
Sempre sábia, nos ensinou que o que gente leva dessa vida é o amor que a gente deu e as emoções que a gente viveu. Não curtia tristezas, choros e nem velas. Como foi muito bem dito por uma de suas sobrinhas, “saiu à francesa”. E isso é a cara dela!
E como uma bela sambista, que não podia ouvir um samba que já virava a “porta-bandeira” empinando a sua bengala, nos pedia, na maior cara de pau, sempre rindo, para que quando morresse nós cantássemos na sua despedida:
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar e cantar e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei, que a vida podia ser bem melhor e será
Mas isso não impede que eu repita
É bonita! É bonita! E é bonita!
(Gonzaguinha – O que é, o que é)
8 Comentários
Lindo texto, uma homenagem Merecida a pessoa mais alegre, dedicada e amorosa que conheci. Tenho certeza quem vovó vai ficar encantada lá no céu. 🥰😘❤️
Que lindo Tati! Me emocionei mais uma vez com a partida da sua avó!! ❤️
Também. Queria ter tido uma avó assim!
Veja o vídeo que gravei com ‘O que é o que é’, no YouTube – Cézar Carioca Mendonça
Lindo, lindo! Quanta sabedoria neste texto. As palavras da sua avó, as do seu filho e as suas, ao eternizar a história dela ❤️
Que texto lindo Tati! E que bom que você conseguiu escrevê-lo, recordar e colocar tanto sentimento aos quatro ventos. Hoje mesmo me lembrei dessa música do Gonzaguinha quando me perguntaram qual foi o enredo musical marcante da minha infância. Nunca a senti tão necessária como agora. Obrigada por este deleite!
Que texto lindo!!
Tatiana amei
Seu texto
É feito com muita sabedoria e experiência de vida.