Carta póstuma ao meu tio.
Oi, tio, querido,
Ontem eu estava assistindo uma partida de futebol e subitamente lembrei de você. Na verdade, já tinha pensado em você mais cedo, enquanto lavava a louça do café da manhã. Num dos raros momentos do dia em que eu realizava uma tarefa doméstica sem ouvir nenhum podcast, a sua imagem me veio à cabeça.
Não sei de onde as lembranças surgiram, mas elas foram aparecendo pouco a pouco, fazendo-me recordar diferentes momentos da sua vida. As memórias vinham e as lágrimas escorriam do meu rosto enquanto eu lavava os pratos.
De noite, quando comecei a assistir o jogo entre o meu Fluminense e o River Plate da Argentina, você apareceu de novo nos meus pensamentos. Lembrei que você comentava que usava o boné do River, que eu tinha comprado em Buenos Aires, em todas as suas consultas médicas de revisão no Inca. Você informava no grupo de WhatsApp da família quando ia ao médico e depois comemorava os bons resultados dizendo: “Claudinha, o boné do River continua me dando sorte”.
Eu sabia que você tinha uma grande coleção de bonés e me sentia feliz de saber que nesses momentos importantes, você continuava usando o que eu havia lhe dado há mais de 10 anos.
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Logo que comecei a assistir a partida, o Fluminense sofreu um pênalti, mas eu não me importei. Eu estava focada mesmo era no River Plate, no seu boné e na sua ausência. Eu tomava consciência de que você não estaria presente fisicamente nas tão aguardadas reuniões familiares pós-pandemia, nós não teríamos mais o privilégio de testemunhar as suas gargalhadas inconfundíveis. Eu pensava em como a família iria lidar com mais esse lugar vago na mesa e sentia um aperto no peito.
Você era uma pessoa diferente. O português mais carioca que eu conheci, amante do carnaval, futebol e cerveja gelada. O único José Augusto que tinha o apelido de Zeca, o único membro da família que tinha duas datas de aniversário, a do dia do seu nascimento e a do dia em que foi realmente registrado. Isso pra você não era um problema, ao contrário, era a grande oportunidade de celebrar mais vezes, coisas que você adorava.

Meu tio e as crianças da família no inicio da década de 80 – arquivo pessoal
Deixa eu lhe contar o que aconteceu nesses dois meses depois da sua partida. A situação da pandemia no nosso país piorou ainda mais, tio. A doença que te levou está matando muita gente e deixando famílias despedaçadas. Graças a Deus, o Cláudio e a Dani puderam se despedir de você. Ainda que você estivesse tecnicamente insconsciente, acreditamos que você estava entendendo o que estava acontecendo e que recebeu todo o amor e todas as energias luminosas que lhe foram ofertadas.
Muitas famílias não têm tido essa oportunidade de despedida.
A novidade boa é que toda a velha guarda da família já tomou a primeira dose da vacina. Seu filho mais velho, que faz parte do grupo prioritário, também já teve essa oportunidade. A vovó Maria e a minha mãe já receberam também a segunda dose.
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Todos sentem muito a sua falta por aqui. No dia de São Jorge você foi muito lembrado. A Marli nos enviou fotos de vocês juntos em festas de celebração dos anos anteriores. Apesar dos pesares, a vovó continua tocando o barco. A nossa matriarca sentiu o baque, mas não se entregou a tristeza.
Na Páscoa, troquei mensagens com a Dani. Não quero perder o contato com a sua companheira. Ela sempre será parte da nossa família. Além dos familiares, os seus amigos também sentem muita falta da sua alegria. Você continua sendo popular no bairro onde viveu esses anos todos.
Tio, não se preocupe conosco. O que mais queremos é que você esteja bem, em paz, ao lado do seu pai, do seu filho e do Pai maior. Continuaremos relembrando as suas histórias, da mesma forma que fazemos com o vovó Amaro e o meu pai. Dessa maneira, você continuará conosco em nossas reuniões familiares. O amor que nos une é eterno.
Dê um beijo em todos aí e diga que sinto muitas saudades. E por favor, não faça muita bagunça junto com o meu pai.
Fique em paz e sinta todo o nosso amor por você!
Da sua sobrinha,
Claudinha.
1 Comentário
Bela homenagem. Emocionante!