A vida pós-pandemia na Espanha: incertezas frente ao “desconfinamento”
Após 45 dias dentro de casa, sem atravessar uma única vez as portas que dão acesso ao corredor do prédio, resolvo levar o meu filho de quase 2 anos para passear. Ciente de todas as regras de distanciamento e permanência, e coberta de medidas de precaução e segurança, fomos olhar o mar.
Assim que colocou os pés na rua, meu filho saiu correndo, como se estivesse descobrindo o exterior pela primeira vez. Na realidade foi uma redescoberta, um entrar em contato com algo que há muito não fazia. A ânsia de tocar em tudo, de movimentar-se para todos os lados, sem rumo, sem direção, simplesmente desfrutando da natureza e da liberdade de espaço foi incrível de se apreciar. Porém, passado este êxtase inicial, o medo me aplacou.
A cada objeto que ele tocava, a cada pessoa que se aproximava… afinal é uma criança pequena, a minha preocupação aumentava.
Foram momentos em que não pude conter os gritos e os alertas ríspidos de “Não faça! Não toque! Não encoste!”, que ao final me culparam e me dilaceraram. O que era para ser um passeio prazeroso de resgate da normalidade, foi uma situação de muita tensão para mim como mãe e talvez para ele também, ao captar todas as minhas aflições. Em poucos minutos, ele quis se refugiar em meus braços e voltamos para casa.
Flexibilização do confinamento
Depois de mais de seis semanas, a Espanha, país que adotou um dos mais rígidos confinamentos do planeta em face à pandemia, começou a flexibilizar suas medidas e permitir o re-acesso às ruas. Em 26 de abril, as crianças até 14 anos puderam sair a brincar e passear nas ruas e, a partir de 2 de maio, o restante da população também estava liberada com restrições.
Mas chegado o esperado momento de pisar nas ruas de novo, muitas pessoas escolheram ficar em casa por segurança e comodidade. Tanto tempo esperando para voltar à vida cotidiana e, ao final, há quem não queira. Como no filme de Luis Buñuel – “El ángel exterminador” (O anjo exterminador), no qual ricos personagens se vêem presos numa das salas de uma mansão após um jantar formal. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias.
É assim que muitos se sentem, com desejos de estender o #fiqueemcasa ao infinito. Os motivos: o medo do contágio, a ansiedade frente ao regresso, o vigente ritmo da realidade e o descobrimento do prazer proporcionado pela vida simples no conforto do lar. Medo de que a liberdade não atenda às expectativas, medo do desemprego, de tomar decisões, de deixar a vida organizada pelo desconhecido. Para alguns, esse medo é muito menor do que o sofrimento de um pequeno apartamento e as dificuldades do confinamento.
Para muitas pessoas esta experiência de confinamento foi uma reconciliação com certas facetas da vida e da personalidade que entravam em conflito com o mundo. Outros se sentem tão à vontade em casa, distantes da agitação exterior, que agora foram tomados pela preguiça de voltar a montar no carrossel e seguir. Para muitos, o confinamento representa uma extirpação da liberdade; para outros foi uma pausa na frenética e estressante rotina. Poder permitir-se um tempo de ócio foi um ganho.
O retorno à rotina nos conscientiza de que a vida cotidiana é um mundo cheio de luz e escuridão, alegrias e sombras. Talvez, como as crianças que têm medo do escuro e ouçam barulho, preferimos nos cobrir com o cobertor do que sair para o corredor para ver o que está acontecendo.
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As casas se converteram em um refúgio, onde estão protegidos das doenças e do mundo, onde foi estabelecido um perímetro de segurança, difícil de abandonar, principalmente diante de tantas incertezas. Pode ser um mecanismo de defesa, com a finalidade de proteger o Ego de um possível desprazer psíquico, anunciado por sentimentos de ansiedade, medo, culpa…Ficar entrincheirado, absorto, pode tornar-se um escape aos desprazeres, às dúvidas e à dura realidade.
Situações semelhantes são encontradas em casos cujas pessoas, após uma hospitalização ou prisão, perdem a segurança e temem o que está do lado de fora, assim como vítimas de sequestros, que permaneceram em cativeiros por longos períodos ou que, diante de um inverno rigoroso, foram forçados a hibernação. Foi coloquialmente nominado de “síndrome da cabana” e corresponde ao medo de mudar o que está ao seu redor. Mesmo o lugar atual onde se encontram não sendo o espaço ideal é onde proporciona segurança.
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Embora se espere que essas posições de resistência doméstica sejam minoria, surge um dilema: se ninguém saísse e escolhesse viver de maneira diferente? Em princípio haverá muitos que não sairão. Então eles perderão o medo quando a contaminação diminuir e a mídia tirar o foco da pandemia. Pode demorar? Talvez. Sair de novo? “Eu preferiria não.”
Segundo o escritor espanhol Pablo D´Ors, o confinamento pode permitir algumas reflexões:
- A vulnerabilidade: tivemos que abandonar a falsa ideia de que somos invencíveis e temos o controle sobre todas as coisas. Somos seres frágeis e indefesos e também dependentes. Por mais isolados que estivéssemos, alguém precisava continuar provendo o alimento, a medicação e a assistência.
- A interioridade: olhar para si, tomar contato com os medos, com os sonhos e os ideais. Parar o automatismo da vida e poder refletir sobre os desejos suprimidos, sobre os pequenos prazeres, sobre o amor a si e ao próximo. Pensar também pode trazer à tona muitos fantasmas e necessidade de ressignificá-los.
- A austeridade: a possibilidade de viver com menos e viver melhor, ou continuar desejando manter os costumes, o rigor e a inflexibilidade.
O desafio está justamente em dominar o medo e alcançar um equilíbrio entre a vida interior e a vida exterior. Não sabemos se esta longa aposentadoria obrigatória será transformadora, mas é leve pensar na possibilidade de uma remodelação.
1 Comentário
Aqui no Brasil as coisas sempre são diferentes , a política e a corrupção sempre atrapalham tudo. Chegamos ao ponto de corromperam em nome do vírus. Absurdo.