Até as carecas se sabem, por Karol Araújo*
Em tempos de corona fica muito difícil pensar ou focar em outra coisa não é mesmo? Mas vamos abrir um parêntese aqui e falar de outro assunto?
Diário de confinamento de uma expatriada dia: sei lá eu qual…
Eu raspei meu cabelo.
Eu mesma, no estilo Edward, o do Tim Burton com as mãos de tesoura.
Ok, ele não estava muito comprido.
OK, eu sempre gostei de mudar meus cabelos.
Ok, raspar já estava nos planos então eventualmente ia sair da imaginação.
Mas o lance foi que eu mesma peguei a tesoura, tirei o cabelo que foi possível (inclusive ritualizando – cada tufo de cabelo que caia na pia, saia também baixa autoestima, patriarcado, desaprovação de si mesma, auto cobrança, perfeccionismo, etc) e depois eu passei a máquina. Comecei com 8 e terminei no zero.
Por que fiz isso?
Porque sim.
Porque eu pude, porque deu vontade de experimentar outra Karol.
Porque tenho queda severa de cabelo depois da bariátrica.
Porque eu comecei a transição capilar há 3 anos e ainda não tinha vivido cabeleira zero.
Porque eu tenho cabelos brancos desde 15 e aos 31 decidi parar de guerrilhar com a minha genética.
Mas esses porquês, que são muito meus e me bastam, não são suficientes para o coletivo. Para o coletivo precisa existir uma razão profunda, como se o meu querer ou os meus motivos não fossem profundo o suficiente, não é mesmo?!
E eu queria muito! Fazia tempo que a ideia me rondava. Mas sabe o que me impediu de fazer antes? A preguiça de sustentar. A falta de vontade de justificar e de encontrar respostas que iriam satisfazer o outro.
Porque me acostumar com essa imagem no espelho seria (e foi!) tranquilo. E olha que mesmo com três horas da máquina ziguezagueando pela minha cabeça não ficou perfeito. Mas eu continuo sendo mulher, vaidosa e feminina dentro daquilo que me é confortável e muito equilibrado na minha rotina, para além do cabelo comprido ou não, do vestido ou da calça, do salto ou do tênis branco muito sujo.
Lembrando que essas escolhas me são possíveis porque minha realidade atual é permeada por uma infinidade de privilégios, claro!
Julgamento
Mas nem essa zona de conforto invisível criada pelo confinamento me livrou do tal julgamento. Meia hora depois de ter terminado minha careca, a enfermeira entra no trabalho a diz: O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? VÃO PENSAR QUE VOCÊ ESTÁ DOENTE! SEU CABELO ERA TÃO BONITO…
Tudo isso na mesma frase, antes mesmo d’eu ter tido tempo de pensar na primeira pergunta. Se essa tivesse sido uma decisão fragilizada, impulsiva da minha parte, esse encontro teria me colocado chorando em posição fetal. Com toda certeza. Mas não foi o caso.

Reprodução do post no Instagram @e_as_criança
Eu sorri e não respondi. Porque a verdade é que ela não tá interessada nos meus motivos.
Você quer saber o poder ou o peso do patriarcado, da construção social no nosso papel de gênero, da imposição de comportamento socialmente exigido transformado em virtude feminina? Faça algo improvável com teu corpo.
Entender sobre si é um caminho sem volta
Até para carecas.
Quando sabemos que nosso valor pessoal e essencial não cabe na perfeita encarnação do papel social esperado de nós, fica muito claro quem somos e muito complexo acessar isso também. A caricatura da mulher perfeita nunca foi algo que eu conseguir acessar. Para quem me acompanha nas minhas redes sociais sabe da minha história com a obesidade, minha relação com a comida, a maternidade solo, enfim… eu sou um caso e tanto, como diria minha avó!
Mas esse lugar, complexo de acessar, é também um caminho de muito saber. Nossa essência é habitada de um conhecimento que julgamos vir do exterior. Do marido, do pai, da mãe, da amiga, da moda, da revista, do outro… quando na verdade o caminho é pra dentro!
Meu cabelo sempre foi reflexo dos meus ciclos ou o fim deles.
Antes de eu entender sobre a ciclicidade feminina, era através dos meus cabelos que eu comunicava ao mundo minha realidade mutante interna – e quanto dinheiro eu investi nessa comunicação!
Entender sobre ciclos, sobre o ser mulher, sobre conexão, sobre gênero, sobre capitalismo (o livro “O mito da beleza” me ajudou muito) e sobre vaidade, que aproveitando a passagem significa “vazio”, me permitiu estabelecer uma relação muito mais saudável com meu corpo e como me sinto com ele e para além dele.
Meu corpo é minha casa, onde habito
E é ele a ferramenta pela qual a experiência da vida pode ser inteira e doce. Porém, se eu permitir que ele se torne instrumento de escravidão através da opinião do outro, do julgamento alheio ou do que é socialmente esperado para o meu gênero, estou apenas contribuindo para que o sistema mais antigo do mundo, o patriarcado, continue existindo. E nos massacrando.
Te falei que íamos falar de outra coisa, mas não disse que seria sobre unicórnios 😉
* Eu sou a Karol, 34 anos de vida, 5 de França, 8 de maternidade, 80 de energia. Procurando meu lugar no mundo enquanto driblo trabalho, maternidade solo, vida fora, o patriarcado e logo mais a vida de universitária. Meu espaço @eascrianca no Instagram é igual casa de vó… uma bagunça organizada. Gostosa que só! Moro na França que não é Paris e pelos cantos da Provance divido as alegria e perrengues dessa nossa aventura. Bora tomar um café e prosear?
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