Quando a primeira palavra não é em português.
Nossa filha soltou a primeira palavra. ‘Allo’, disse numa sexta-feira. E no sábado. E no domingo… feliz com sua nova aquisição de vocabulário, ela não parava de repetir. A primeira vez que escutamos, ficamos nos perguntando se não era um ‘achou!’, daqueles que a gente fala quando está brincando de esconde-esconde. Ela já balbuciava ‘papa’ e ‘mama’, mas será que tinha aprendido sua primeira palavra de verdade em português?, pensei, orgulhosa de nossa pequena bilíngue.
Em tempo, podem me perguntar: mas não seria a terceira palavra que ela estava falando? Respondo que ‘mama’ e ‘papa’ para mim estão acima de qualquer linguagem, essas palavras vêm para massagear a alma e o coração, escutá-las não tem preço e parecem fazer parte de uma língua especial.
Mas, e quando a primeira palavra não é em português? Finalmente, era um verdadeiro Allo em francês. Aqui em Québec, no Canadá, falam Allo com muita frequência onde quer que você vá, como um ‘oi’ no Brasil. Na creche que nossa filha frequenta, ouvimos todo o tempo quando chegamos. As educadoras dizem para as crianças ‘Allo, que bom que você chegou!’, ‘Allo, como você está hoje?’. Quando me dei conta, aquele orgulho de tê-la escutado soltando a primeira palavra na nossa língua materna, virou em questionamento.
Ora, em casa só se fala o português, porque saiu o francês?
Como se fosse uma questão de escolha minha… Como se em casa ela tivesse que falar a língua que falamos com ela, mesmo estando exposta, na maior parte do dia, a uma outra língua. Sei bem que não é. Sei que será uma decisão dela. Sei que um dia ela poderá escolher falar em francês entre os amigos, na escola, fora de casa e também em casa. Sim, eu sei que isso pode acontecer. Mas, até lá, papai e mamãe terão a tarefa de expô-la ao português de todas as formas possíveis. Músicas, brincadeiras, livros. Já colecionamos alguns que gentilmente peço quando a família e amigos no Brasil me perguntam o que dar de presente para a nossa pequena. É uma das formas de não deixar o português de lado.
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Estou com um sentimento do avesso. “Ei! Fica orgulhosa porque sua filha tão pequenina está tendo a oportunidade de aprender uma segunda língua, numa imersão fantástica”. Ela nasceu aqui. Natural falar o francês submersa que está em um mundo francófono. Pera lá, vou corrigir meu pensamento: “Ei! Fique feliz porque sua filha terá a oportunidade de aprender uma segunda língua, que será o português. E não ao contrário”. Porque para nós, pais que viemos do Brasil, o português é e sempre será a nossa língua materna. As que vieram depois são a segunda, terceira língua. Nossa opção de falar somente o português em casa é o primeiro caminho a seguir para que ela o absorva da forma mais natural possível.
A questão aqui não é o bilinguismo. É so uma mãe que vive longe (bem longe, diga-se de passagem) do seu país de origem e se deu conta de que foi dada a largada para essa parte da aventura. Que, convenhamos, são muitas nessa tal maternidade, não importa em qual lugar do mundo você esteja.
Transmitir a nossa cultura, eis o desafio. Aprendi que quando aprendemos uma língua, aprendemos não somente sua fonética, sua escrita, suas excessões de conjugação e afins. Ela vem carregada de sentimentos que são traduzidos na forma de falar, com expressões, entonações que são próprias daquele lugar em que se fala aquela língua. Hoje eu começo a entender a grande responsabilidade que temos em apresentar o português à nossa filha de forma que ela queira aprender e entender o que tem por trás das palavras.
Hoje no meu trabalho eu passei por uma situação particular: depois de quase seis anos no Canadá, vi pela primeira vez o símbolo R$ do Real. Uau! Há quanto tempo não o via! Pois bem, o que eu quero compartilhar aqui é o sentimento que me veio nesse momento: eu conheço o lugar de onde vem essa moeda. Eu vim de lá. Eu sou de lá. Eu conheço essa moeda. Simples, né? Era. Não é mais. A cada ano que passa, existem coisas da terra natal que vão ficando cada vez mais distantes.
Hoje, quando comecei toda essa reflexão sobre a primeira palavra em francês dita pela nossa filha, pensei nesse episódio do Real que me trouxe um sentimento de nostalgia. O que ela vai sentir quando estiver numa livraria e ver um livro sobre o Brasil? Quando algum colega perguntar sobre as lindas praias brasileiras? Quando ela no supermercado, no corredor de importados, se deparar com a farinha de fubá? Quando ela assistir o jornal e ver uma notícia sobre o Carnaval do Rio? O que ela vai sentir? Imagino que não será o mesmo sentimento que o meu, carregado de muita história, pois ela não terá essa bagagem. Mas desejo, do fundo do coração, que seja um sentimento bom, de alguém que terá tido a chance de conhecer um outro mundo, o da língua portuguesa.