Confesso que quando iniciei meus estudos sobre língua de herança, não concebia que alguma família pudesse cogitar não fazer essa escolha. Simplesmente não fazia sentido para mim alguém deliberadamente escolher não transmitir sua língua materna para os filhos.
Certa vez, em um desses grupos de mães expatriadas, li o seguinte comentário: “Parem de falar sobre isso! Meus filhos nasceram em outro país e o pai não é brasileiro. Eu não tenho família e nem pretendo voltar ao Brasil, então, português não é uma opção para a minha família.”. Fez-se um silêncio sem fim dentro de mim. Eu sou daquelas educadoras entusiasmadas, sabe, e essas palavras ecoaram na minha cabeça por um bom tempo.
Lição aprendida
Não posso negar que a minha primeira reação foi um misto de surpresa e julgamento. Quis logo catalogar e fechar na caixinha: “inacreditável” e deixar mofar lá dentro. Mas, passado o impacto inicial, refleti. Refleti como mãe, como educadora, como fonoaudióloga. Tomei como aprendizado além dos livros e pesquisas acadêmicas.
Transmitir a língua portuguesa como herança é, sim, uma decisão que cabe à família. E é intransferível, além de não pode ser terceirizada.
Nessa relação, meu papel como educadora é informar, orientar e dar suporte para as famílias. É ouvir, gerar espaços privilegiados de expressão linguística e cultural. Preciso olhar para cada criança, jovem e adulto, como indivíduos diferenciados e únicos. Eu me proponho a construir pontes para transitar aprendizados e saberes de todas as partes. Mas o papel da família está lá e é central.
Leia mais: Meu filho está esquecendo o português
Estamos vivemos tempos de polarização e verdades absolutas diametralmente opostas. Tempos de discussões acaloradas e causadoras de rupturas. Tempo de isolamento, escolas fechadas, viagens adiadas. Empregos em risco e incertezas com relação ao futuro. Ganhamos tempo ou perdemos tempo? E nesse cenário, essa história retornou a minha mente ecoando as palavras: decisão das famílias, papel dos educadores, acolhimento, respeito, tolerância e empatia.
Língua de Herança
A língua de herança é aquela que se define no seio familiar. Traz sons, memórias, cores e sabores de histórias e experiências pregressas que definem um indivíduo em um tempo sociolinguístico e cultural. E essa língua se renova e redefine sua jornada na relação com os descendentes. Os descendentes por sua vez, constroem suas próprias identidades multiculturais e plurilíngues.
Então, com todo o respeito, é muito mais do que a língua da mamãe, do papai ou da vovó, ou do Brasil ou de Angola. Também não é a língua que aprendemos frequentando uma escola de idiomas. Tampouco é a língua que todo mundo fala ao redor.
Logo, a família é o agente transmissor dessa língua minoritária. Não se transmite herança, legado, sem ser por meio da família. E essa língua tem que ser falada, ouvida, lida, escrita, dançada, brincada, ninada, cheirada, vivida!
Quer saber mais sobre língua de herança? Mães Mundo Afora tem uma seção inteirinha dedicada a esse tema. Clicando aqui, você encontrará outros textos escritos por mim e por outras tantas educadoras e mães, histórias inspiradoras. Vale a pena navegar.
Sim, eu quero o português como língua de herança na minha família
Se está posto que é uma opção da família, por que você diria sim? Bem, há inúmeras pesquisas que apontam vantagens relacionadas ao bilinguismo. Não se trata de uma corrente acadêmica isolada, modismo ou tendência passageira.
Há vantagens quanto ao desenvolvimento cognitivo, potencializando a memória, raciocínio lógico, incrementando foco e flexibilidade. Outras pesquisas, ainda que em andamento, apontam que bilíngues podem apresentar mais tardiamente os sintomas relacionados ao Alzheimer ou outras demências em relação a monolíngues (Clique aqui para artigo jornalístico e aqui para o Journal of Alzheimer’s Disease).
Um outro ponto bastante favorável quanto à promoção e manutenção da língua de herança versa sobre a possibilidade de construir relacionamentos. Não apenas facilitando a comunicação e consequentemente fortalecimento de vínculos com familiares falantes do português, mas também com falantes de diferentes línguas. A realidade é que vivemos em um mundo globalizado e cada vez mais conectado por apenas um clique.
Crescer crianças plurilíngues e multiculturais, amplia a visão de mundo, tolerância e aceitação da diversidade, busca de soluções criativas, e por consequência, pode impactar positivamente na autoestima e capacidade de adaptabilidade. Também parece fatores fundamentais para a construção de um futuro melhor.
Acho midiático afirmar que multilíngues são mais inteligentes, entretanto, há sim uma vantagem curricular na medida que desenvolvem a capacidade de transferir conteúdos e habilidades acadêmicas entre os idiomas.
Por que algumas famílias escolhem o não?
Se há vários pesquisadores, educadores e pais afirmando as 1001 vantagens de ser bilíngue, então por que algumas famílias optam por não transmitir a língua de herança?
Creio que algumas pessoas tomam essa decisão de forma consciente, talvez temendo enfrentar os possíveis desafios já que não basta apertar o “play” e magicamente tudo acontece. Outras, associam língua de herança com experiências negativas sofridas no país de origem, e desejam romper laços.
Outras ainda, são paralisadas mediante toda a sorte de desencorajamentos. Eles vêm de forma direta ou boicote a partir de parceiros, professores, profissionais de saúde, parentes ou palpiteiros de plantão. Há muitos mitos sobre o bilinguismo que volta e meia precisam ser claramente desconstruídos. Ainda há profissionais que desconhecem o tema. Por isso, além dos dois textos que você pode ler clicando nos links acima, eu já adianto que bilinguismo não causa atraso na aquisição e desenvolvimento da linguagem.
E há aquelas famílias ainda que, paulatinamente, vão desistindo durante o processo. É um comprometimento de longo prazo. Os próprios filhos podem demonstrar atitudes de resistência ou negação, e por conseguinte, minar os esforços das famílias.
Qual é o segredo?
Não há receita ou segredo.
É fato que promover e manter o português como língua de herança requer dedicação, paciência, persistência, tempo, estudo e o estabelecimento de uma política linguística dentro e para além do ambiente doméstico.
Parece um bicho de sete cabeças? Também não é assim. Se você tem o desejo de seguir o caminho da promoção e manutenção do português em sua família, persista! E claro, conte conosco!
Sempre é tempo
Em momentos de conflito ou tomada de decisão, pensar no ideal, real e possível, particularmente me ajuda bastante.
No caso do português como língua de herança, o “ideal” é que todas as pessoas diretamente envolvidas com o cuidado da criança, dialoguem e combinem uma política linguística para a casa, até mesmo antes da criança ser gerada. E estou falando do casal, avós e outros parentes, babás etc. (Se você não conhece as possibilidades de acordos, clique aqui.).
Mas navegando no mundo “real”, temos que agir e persistir. Lembremos que se deixarmos tudo na mão do “possível”, poderemos comprometer o êxito da nossa empreitada de herança por conta da quantidade e variedade de exposição. Não chegaremos a lugar algum sem constância nem consistência.
Quando começar ou recomeçar? Agora! Sempre é tempo. A decisão é sua.