Karina Pereira é formada pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduada pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Sua linha de pesquisa durante a iniciação científica foi sobre os transtornos de linguagem oral em crianças falantes do português no Brasil. Em 2017, ela se mudou para Dublin e se interessou muito pelo bilinguismo. Acompanhou de perto famílias brasileiras no desafio do desenvolvimento infantil em um outro país e, sempre curiosa e buscando se aprofundar nos estudos e ações na área, conheceu o Mother Tongues (projeto da linguista e pesquisadora italiana Francesca La Morgia) e a AMBI (Associação das Famílias Brasileiras em Dublin). Karina seguiu se capacitando e fazendo cursos na área e hoje presta assessoria a famílias expatriadas no que se refere ao desenvolvimento de linguagem no contexto bilíngue. Hoje, o MÃES MUNDO AFORA entrevista Karina para falarmos um pouco sobre crianças bilíngues e o desenvolvimento da fala.
MÃES MUNDO AFORA: É super comum ouvirmos que é normal crianças bilíngues começarem a falar mais tarde. Isso é verdade?
KARINA PEREIRA: É um mito! Os principais marcos do desenvolvimento oral das crianças bilíngues e monolíngues são os mesmos (no que se refere ao início dos balbucios e início dos primeiros sons de fala com significado). Muitas vezes, o vocabulário da criança bilíngue, por conter palavras dos dois idiomas, parece ser limitado e como elas utilizam bastante esse code-switching (variam entre as duas línguas numa mesma frase). Pode parecer que não possuem uma comunicação efetiva. Outro aspecto do biluinguimos é um período ao qual denominamos de silent mode, em que ainda estão assimilando as duas línguas, ganhando vocabulário receptivo, para que depois o vocabulário expressivo seja mais notável. Isso pode dar uma impressão de que as crianças que crescem num ambiente bilíngue estão atrasadas, quando na verdade estão somente organizando todos os sons de fala para aplicá-los de forma confortável no dia-a-dia.
Como saber se meu filho tem atraso de fala?
O atraso de fala pode ser facilmente identificável, inclusive pelos pais, quando as crianças apresentam dificuldades no chamar “papai” ou “mamãe” (seja em português ou qualquer outra língua), dar nome a objetos comuns, mesmo ainda com balbucios intencionais ou com redução da palavra real. O atraso de fala também pode vir como consequência de várias outras alterações, como episódios repetitivos de inflamações no ouvido (otite média aguda). As crianças com esses quadros recorrentes podem apresentar atraso na fala devido à perda auditiva de natureza condutiva, em que a avaliação de um otorrinolaringologista se faz extremamente necessária para a indicação de sugestões complementares ao trabalho fonoaudiológico, como a colocação dos “tubos de ventilação”, que “desentopem” o ouvido para que a criança volte a ouvir alguns sons essenciais para o desenvolvimento da linguagem.
O que pode causar o atraso na fala ou linguagem?
Como pontuado anteriormente, as otites de repetição são apontadas como uma das maiores causas do atraso de fala e linguagem em crianças. No entanto, a falta de estímulo ou o estímulo inadequado também podem ocasionar atraso na aquisição da fala e linguagem oral. Estímulos de natureza somente receptiva (como televisão, tablet ou celular) não são suficientes para que as crianças se sintam encorajadas a interagir e não propiciam a troca de turno comunicativo, que é a habilidade de a criança ouvir, processar e responder o estímulo oferecido.
Eu falo em português, mas meu filho só me responde em inglês (ou outra língua). O que fazer?
É muito importante seguir a estimulação em sua língua materna, se isso fizer sentido para você. Seu filho pode ter a preferência por utilizar o inglês como língua predominante, mas isso não significa que ele não lhe entenda. Apresentar novas palavras e o português como algo divertido e interativo são as grandes chaves para que a criança utilize o português como sua língua de herança.
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Devo corrigir quando a criança mistura palavras em línguas diferentes na mesma frase?
De forma alguma! Existe um estudo muito interessante da Dra. Naja Ferjan Ramirez, que estuda o processamento e os mecanismos cerebrais de linguagem em bebês e crianças. O estudo enfatiza que o code-switching é um sinal de sofisticação linguística. Quando as crianças bilíngues utilizam da segunda língua na mesma frase para se expressarem, estão pensando de forma natural sobre a gramática, o significado e a construção orgânica das frases. Isso é extremamente importante para o desenvolvimento da linguagem das crianças no contexto do bilinguismo ou multilinguismo.
É comum a criança ter dificuldade em pronunciar alguns sons ou devo procurar ajuda?
Algumas trocas de sons são comuns no desenvolvimento de linguagem oral seja de crianças bilíngues ou falantes de uma só língua, como dizer “lélow” para “yellow” ou “pato” para “prato”, dentre tantos outros exemplos. No entanto, há uma idade limite para que essas trocas sejam superadas de forma natural. É importante que os pais estejam atentos a estes marcos do desenvolvimento e procurem ajuda sempre que notarem algo diferente. Nem tudo é atraso de fala como a gente imagina! Hoje em dia temos vários outros diagnósticos dentro das dificuldades de linguagem oral em crianças, como a apraxia de fala, o atraso motor oral, o transtorno do desenvolvimento da linguagem (TDL) e outros distúrbios que necessitam uma avaliação qualificada.
A professora da creche/escola sugeriu que eu falasse inglês (ou outra língua) com meu filho para ajudar na adaptação da creche/escola. Isso pode impactar no português?
Este é um assunto bastante controverso porque depende do tempo e do ambiente linguístico que a criança tem em casa, além do tipo de estímulo para essa adaptação. Na linha que trabalho, de embasamento científico e acolhedor, procuro avaliar cada ambiente familiar antes de sugerir um “intensivão” em uma outra língua. O português para nós, mães brasileiras, é nossa língua do afeto, onde demonstramos nossos sentimentos e emoções mais genuínas. Não sou a favor dessa adaptação ou modelo intensivo muitas vezes forçado, porque as crianças assimilarão o vocabulário no ambiente social e cultural da língua adquirida de qualquer forma, na velocidade em que se sentirem confortáveis. Se o pai tiver o inglês como língua materna, por exemplo, sugiro que mantenha sua interação com a criança em inglês, mas de forma natural, sem que a criança perceba que está sendo pressionada a falar mais. No caso de família em que ambos os pais tenham o português como língua materna, vale a pena em casa, em contextos específicos e sempre de forma lúdica, investir em palavras ou frases que sejam bastante utilizadas na escola. Ex: “Let’s get ready, filho!”, “It’s your turn” (numa brincadeira), frases que a criança também utilizará na escola.
Para as famílias que moram em locais onde não há outros falantes de português, o que se pode fazer para estimular a língua de herança?
Sou apaixonada pelos projetos de promoção de língua de herança ao redor do mundo! Hoje em dia, temos muitas ações lindas de promoção de língua de herança. Encontrar uma rede de apoio a qual seu filho se sinta pertencente é fundamental. A estimulação da língua de herança pode vir através de músicas infantis, filmes, brincadeiras e do contato intergeracional (ligar para os avós, tios ou familiares que partilham dessa língua e cultura) é essencial.
Quando devo procurar ajuda de uma fono?
Costumo dizer que “Sempre que o coração estiver apertadinho por uma preocupação!”. Nós, fonoaudiólogXs, não trabalhamos somente com a patologia, mas com a construção de um desenvolvimento de linguagem mais fluido, sem mitos e de forma horizontalizada com os pais. A elaboração de planos de estimulação individuais e personalizados, atividades específicas voltadas ao perfil da criança, são algumas de nossas competências profissionais mesmo quando a criança não apresenta atraso na fala ou outra patologia associada ao desenvolvimento de linguagem. Sugiro procurar fonoaudiólogas que estejam familiarizadas com o contexto bilíngue. Eu fico à disposição caso tenham qualquer dúvida!
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