Autismo e línguas estrangeiras
É possível uma criança com transtorno do espectro autista compreender dois idiomas? Pela minha experiência pessoal, sim. O meu guerreiro compreende e executa, mas fala somente uma palavrinha aqui e outra ali devido o às suas dificuldades dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Numa consulta médica em inglês, eu falei para o meu guerreiro se sentar, abrir a minha bolsa e comer o lanche. Ele escutou, compreendeu e realizou. Já no final da sessão, falei em português para ele colocar o lixo no cesto, e ele rapidamente se levantou e jogou fora. Ainda ganhei o bônus da palavrinha TCHAU! O médico surpreendeu-se: “Nossa, ele compreende tudo!”
Bilinguismo e Transtorno do Espectro Autista
Existem poucas pesquisas sobre autismo e bilinguismo. Como o autismo é um espectro, é difícil encontrar uma amostra grande com pessoas com as mesmas características, submersas na mesma sociedade bilíngue. Para escrever o texto, encontrei algumas pesquisas que me chamaram a atenção.
O estudo exploratório de habilidades lexicais em crianças bilíngues com transtorno do espectro do autismo, realizado em crianças bilíngües (inglesas/chinesas) e monolíngues (inglesas) em idade pré-escolar com TEA, constataram que ambos os grupos tiveram pontuações equivalentes em uma medida de idioma e vocabulário, incluindo vocabulário de produção em inglês, vocabulário de produção conceitual e compreensão de vocabulário.
No caso das crianças bilíngues deste estudo, quando comparado a extensão do vocabulário dos dois idiomas, não houve diferenças significativas no tamanho dos vocabulários, tanto na produção como na compreensão. Ou seja, o contexto bilíngue não é prejudicial para a aquisição da linguagem. Clique aqui para saber mais.
O estudo sobre as diferenças de idioma entre crianças monolíngues de inglês e bilíngues inglês-espanhol com distúrbios do espectro do autismo (de Valicenti-McDermott et al – 2012) constatou que crianças com TEA e exposição ao bilinguismo aumentaram a tentativa de se comunicar por meio de gestos, murmúrios e mais engajamento com os pares, quando comparados com crianças monolíngues. Clique aqui para conhecer mais.
A American Speech Language Hearing Association (ASHA) publicou em 2018 uma revisão bibliográfica para orientar profissionais e pais sobre o bilinguismo e o TEA. O artigo da ASHA (com titulo “A tomada de decisão clínica baseada em evidencias para crianças bilíngues com o TEA: um guia para os médicos”) discute estudos já publicados e recomenda que:
- “Os pais devem continuar a expor seus filhos com TEA em todos os idiomas importantes e necessários em sua família e comunidade. Essa prática garantirá que a criança possa participar de interações importantes e não será excluída de seus círculos sociais.”
- “Os pais que não são falantes nativos de inglês devem ser incentivados a falar com seus filhos em seu idioma nativo para aumentar o fluxo, a qualidade e a duração de sua interação com os filhos.”
De acordo com Yu (2016), citado no artigo acima, a absorção mais eficaz de linguagem pelas crianças ocorre em contextos naturais. Se quiser conhecer o estudo da ASHA, clique aqui.
Brigadeiro ou Brazilian chocolate truffle
Ter filhos que compreendessem mais de um idioma foi uma necessidade que surgiu em função do estilo de vida que vivemos. Mudamos de país constantemente em função do emprego do meu esposo.
Quando falo outro idioma, sinto-me um robô. A minha voz não tem melodia e entonação. Não consigo expressar as emoções quando falo outro idioma, o meu sotaque é fortíssimo. É como se eu perdesse a minha forma. Não me sinto confortável. Raspar a panela com restinho de brazilian chocolate truffles não é a mesma coisa do que raspar a panela de brigadeiro. Concordam?
Acredito que dividir momentos como, por exemplo, brincar com os meus filhos é muito importante para desenvolver uma relação afetiva, além de despertar sentimentos positivos em relação a minha infância no Brasil. Descrever o meu passado só tem graça se for na minha língua materna, pois vem carregado de sentimentos!
Leia também: Irmãos de crianças com deficiência: um cuidado mais do que especial
O estar no ambiente em família tem que ser acolhedor para as crianças, as quais necessitam adaptar-se constantemente (no meu caso, a cada três anos!). Além do idioma, carrego os nossos móveis, os brinquedos preferidos, o arroz com feijão: a nossa casa brasileira.
Outro motivo que optamos por manter a nossa língua materna em casa, é porque sempre regressaremos para o Brasil, e sempre nos reconectaremos com os nossos familiares. Queremos que as crianças compreendam os seus avós e primos. Faço um convite à leitura do texto A língua do amor, a língua do brincar e a língua local.
Mantendo o português em casa
Tive a chance de ler o livro The Bilingual Edge – The Ultimate Guide to Why, When and How, de Kendall King, Alison Mackey, publicado em 2009. O livro sugeria a manutenção da língua materna em casa para que as crianças fossem bilíngues, sempre equilibrando o número de horas nas línguas em que a criança estava aprendendo em outro ambiente.
Seguindo o livro, meu filho recebe aula e terapias em inglês, totalizando 10 horas diárias de submersão. Fora os desenhos animados e musicas do rádio. Com certeza o português está em desvantagem em termos de exposição, mas vem cheio de emoção e carinho, pontos positivos para a manutenção da aprendizagem em casa!
Todas as atividades realizadas em consultório em inglês são pareadas com o português em casa. Para que isso ocorra, a presença dos treinamentos e reunião com a supervisora do meu filho são fundamentais. (Sugiro a leitura do texto Aba na Califórnia. O acompanhamento na escola e as trocas de informações com a professora regente são de suma importância. Sempre me informa as atividades realizadas em sala de aula.
Aplico os conceitos aprendidos em português em casa, mas de uma forma que se mescle no nosso cotidiano e de forma natural. Os armários da cozinha, do quarto e caixas organizadoras com brinquedos são etiquetadas com os nomes e com suas respectivas imagens dos conteúdos em português e inglês. Sabemos que crianças com TEA são muito visuais e isto facilita o aprendizado do meu filho e também me organiza!
Os desenhos animados brasileiros no NETFLIX são assistidos em português, sempre que há a possibilidade de mudar o idioma. Gibis e livros em português estão disponíveis pela casa, para manuseio e leitura dos filhotes. São os melhores presentes que recebemos das nossas visitas e da vovó (Obrigada, vovó!). A participação de eventos com a comunidade brasileira é excelente para exposição e manutenção da cultura brasileira.
Pessoalmente percebo que o conhecimento de mais de um idioma favorece a interação dos meus filhos em vários ambientes na sociedade (casa, escola, igreja, comunidade), pois não sentem a barreira lingüística, despertando o sentimento de pertencimento em vários ambientes, independente do idioma.
Acredito que cabe a cada família decidir o que é melhor para os filhos, mas sugiro a necessidade de uma reflexão antes de fazer uma escolha de serem criados em ambientes bilíngues, monolíngues ou aprenderem um idioma posteriormente.
E você, qual é a sua preferência? Brigadeiro ou Brazilian chocolate truffle?
4 Comentários
Muito interessante Rachel! Eu também prefiro me expressar em português…
Querida Raquel, obrigada por ter lido o texto. Muitos brigadeiros gostosos para você!
Minha amiga , que orgulho !!! Cada dia uma nova faceta apresentada e mais informações para alegrar o nosso saber .
Deus a abençoe!
Continue assim
Vc sempre será minha chefe do coração
Querida Valéria, amei o seu comentário! Obrigada! Na nossa cidade recebemos muito estrangeiros, acho que esse texto também se aplica para orientar as famílias que chegam em Brasília.
Muitas saudades minha amiga!
Muitos brigadeiros para você!