Amamentação e empoderamento
Mas você ainda tem leite?
Essa é uma pergunta que escuto frequentemente quando me veem amamentar a minha filha de 22 meses. Oras, é claro que tenho leite! Essa resposta gera infinitas vezes uma cara de espanto da outra parte e segue uma história, seja pessoal, seja da irmã, cunhada ou amiga que não teve leite suficiente. E talvez você que está lendo este texto agora também tenha uma história assim para contar. A minha pergunta é: quando é que deixamos de acreditar na potência do nosso corpo e passamos a crer que não somos capazes de produzir leite para as nossas crias?
Eu obviamente não sei a resposta, mas desconfio que isso esteja intimamente ligado a várias questões da nossa sociedade, inclusive à enorme indústria de leite artificial, mamadeiras e chupetas. Não me entendam mal. Essas coisas não são por si só vilãs, elas nasceram para suprir uma necessidade real de alguns casos. Mas elas podem atrapalhar e muito a amamentação. Entretanto, não é exatamente sobre isso que quero falar hoje, mas quem quer se aprofundar no assunto encontrará muitas informações baseadas em evidências científicas no blog do grupo virtual de amamentação.
Por que a pergunta incomoda?
Quando perguntam a uma lactante se ela (ainda) tem leite, independente da idade do bebê – mas quanto menor pior, na minha opinião – está implícita a possibilidade do leite realmente não ser produzido pelo corpo desta mulher. E isso gera insegurança, especialmente em alguém que recém pariu e está passando pelo puerpério, que por si só já é uma montanha-russa de emoções.
A pergunta em si incomoda porque tira da mulher a confiança em si mesma e no seu corpo. Todo choro do bebê, o ganho de peso que pode não estar dentro do esperado pelo pediatra, ou algum outro sinal a mais já vai fazer acender o alerta nessa mãe de que ela não é boa o suficiente. Deve ser culpa do leite: ou é fraco, ou não tem.
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Na realidade, seria mínima a possibilidade da mulher não produzir leite (existem poucos motivos fisiológicos para isso) se a amamentação fosse sempre realizada em livre demanda e sem interferência de outros bicos, o que acontece pouco nos dias de hoje. Preciso alertar aqui que o uso de bicos artificiais, tal como chupeta, mamadeira ou bico de silicone, pode sim afetar a produção de leite (clique aqui para saber mais sobre isso) – mas quantas mulheres realmente sabem disso? E não sabendo disso se usam desses artifícios e, sem querer, podem acabar progressivamente diminuindo a sua produção de leite e levar ao desmame precoce.
Empoderamento e rede de apoio
A maternidade sem rede de apoio pode ser extremamente pesada. Quem, como eu, viveu isso longe da família sabe bem disso. E amamentar exclusivamente em livre demanda sem um suporte (especialmente emocional) é uma tarefa bem complicada. Uma mulher precisa ao seu redor de pessoas que acreditem no seu potencial e que não questionem a eficácia de seu leite a cada choro do bebê.
Você sabia que um bebê chora e mama não só por fome?
Eu tive muita sorte da rede que tenho. Ainda que durante a gravidez eu tenha me informado e até participado de uma palestra sobre amamentação, não tivemos um início mágico, o que é muito comum. Teve pressão das enfermeiras no hospital para dar leite artificial, que inclusive foi dado na chuquinha; pouca ajuda com a pega e muita confusão de informação. Mas eu tinha, além da vontade enorme de amamentar, uma mãe que me amamentou por mais de dois anos me apoiando, um marido que nunca duvidou da minha capacidade e especialmente uma amiga que me deu todo o apoio necessário para ir em frente. Além de ter me apresentado a um grupo virtual de suporte à amamentação, estava ali via WhatsApp para olhar se a pega estava correta, me mandava áudios acalmando meu coração de recém parida e, principalmente, me empoderou.
Sim, amamentação no fim das contas é também questão de empoderamento. Ela só vai acontecer de forma tranquila se existir uma rede ao seu redor que te faça confiar na sua própria capacidade. Coincidentemente o tema da Semana Mundial de Aleitamento Materno este ano é exatamente o empoderamento dos pais para possibilitar o aleitamento:
Empoderamento é um processo que precisa de informações imparciais embasadas cientificamente e suporte para criar um ambiente propício no qual mulheres possam amamentar de forma ideal. (tradução livre)
Outro dia ouvi de uma conhecida aqui na Itália (médica, por sinal, o que me faz pensar o quanto a formação dos profissionais de saúde está defasada em todo lugar do mundo) que essa história de que toda mulher é capaz de produzir leite adequado ao próprio filho foi o que “estragou” (foi essa a palavra usada por ela) a irmã dela, que continuava insistindo na amamentação, mesmo o bebê ficando com fome. Perguntei se o bebê ganhava peso, se tinha sido avaliada a pega, e ela confirmou que sim. Então questionei o que a fazia crer que o sobrinho estava passando fome. A resposta? “Porque ele passava horas mamando e sempre chorava”. Mas isso não é ser um bebê?
Conversamos por um tempo e a minha conclusão é que o que “arruinou” a irmã na verdade – e o que atrapalha as mães que amamentam em geral – foi a falta de apoio, foi ter alguém tão próximo (provavelmente não deve ter sido a única) dizendo que ela não era capaz. E quase sempre a história é a mesma: falta informação, apoio e incentivo.
Por isso, se você conhece uma nutriz, não pergunte a ela se ela tem leite. Apoie. Seja a rede que empodera. E se você é a mãe que precisa deste suporte, rodeie-se de pessoas, de mulheres, que te ajudem a acreditar em você mesma. Procure ajuda de profissionais que entendam de amamentação, preferencialmente uma consultora, caso suas mamas estejam machucadas ou se o bebê não estiver ganhando peso algum.
Divisão de tarefas
O que escuto frequentemente é que a vantagem de dar leite (seja artificial ou ordenhado) na mamadeira é que o marido ou outra pessoa pode assumir essa tarefa, porque tudo deve ser dividido igualmente.
Bom, para começar a mamadeira não é o único método para tal, mas entendo ser o mais difundido e aceito na nossa sociedade. Mas fora isso, eu questiono o que é divisão igualitária de tarefas. Amamentar é uma função da mulher. Ponto. É cansativo, não é automático e glamouroso como tendemos a acreditar antes de parir. Aliás a maternidade real em si é muito diferente da pintada nos comerciais da vida.
E para a sobrevivência da mãe, especialmente nos primeiros meses, onde tudo ainda é novo e a díade mãe-bebê está começando a se habituar a essa nova vida, simplesmente delegar a alguém a tarefa de alimentar o bebê não é suficiente. Por que tendemos a culpar a amamentação pelo cansaço materno? O que precisa mesmo é de alguém que lave, que cozinhe, que arrume a casa, traga água e dê muito amor a essa nova mãe. Para que ela não tenha que pensar em nada disso e não seja em nenhum momento cobrada por tal. Para que ela possa se entregar inteiramente a esse momento.
Amamentação é entrega. E só uma mulher que acredita no seu poder e está rodeada de pessoas que a amparam e empoderam conseguirá verdadeiramente se entregar sem pensar.
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